quinta-feira, 18 de setembro de 2008

ORANDO

Nada me dói tanto
como a estúpida maldade dos prepotentes.

A inútil e persistente aleivosia
Que se insidia minando-me a paciência.

A malicia estulta dos gananciosos
destilando o visco da sua malquerença.

A ingerência abusiva desses estranhos
que abusam da minha condescendência.

Oh Deuses eternos!
Imponde-me uma justa penitência.
Mas livrai-me do inferno que os estúpidos são na minha existência.

sábado, 6 de setembro de 2008

PELO TEMPO VAMOS

Setembro que começa
Cairam as primeiras chuvas
Sobre a silente madrugada

Estão maduras as uvas
Começa a azáfama nas vinhas
Colhem-se verdes frutos nos olivais

Como é doirada esta luz
Num Outono anunciado
E castanhos os campos já lavrados

O Sol que acorda cada vez mais tarde
Na aceitação do viver a vida
Pelo tempo vamos

domingo, 31 de agosto de 2008

CONFORMAÇÃO

Aceitemos sem mágua
Que descendo vai
O véu outonal
Do nosso viver

Aceitando
Que deixando de ser
Fogosos amantes
Saibamos ficar
Ternos companheiros
Muito serenos
E nada distantes

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

MOMENTO II

Este calor pesado
Que vai madurando as uvas
Gerando o vinho
Que nos aquecerá
Chegando o frio Imverno
Sufoca-me
Neste final de Verão

Venha a mim o teu império
Natureza-mãe
Força geradora de todas as coisas

Seja feita a tua vontade
Aqui na terra

Reconheço a tua lei
Em assumida resignação

terça-feira, 26 de agosto de 2008

IMPERFEITO EM FORMA DE SONETO

Quieta melancolia
um sol que acalenta
e quase me sufoca
de tamanha solidão

Assim o Verão
do esbraseado sul
ventre gerador
refúgio e terra-mãe

Nesta casa onde regresso
me criei e me reencontro
na renúncia redescubro a quietação

Venho no presente
Ciente do fim pressentido
Em busca do que há muito tempo fui

sábado, 23 de agosto de 2008

RETORNO

De volta ao rotinado
(ou, rotineiro?) viver.

De que se faz uma vida?
Desta rotina rotina infinda
da re-construção do ser?

Do aceitar nasce a serena condição
de ir sendo
realizando

Da revolta,
a angústia
o desespero
a des-construção

Como da busca do prazer
nasce a permanente carência,
só a renúncia garante a quietação.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

REGRESSANDO ...

Volto à casa
nave-mãe de todas viagens

Aqui me construo
e desconstruo

No infindável retorno
da vida que fui
do viver presente

Do que o futuro
me vai permitir

Do que eu
por minha vontade
deixar acontecer.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

O BEIJO

Ainda toda quente da roupa tirada
Fechas o olhos e moves-te
Como se move um canto que nasce
Vagamente mas em toda a parte

Perfumada e saborosa
Ultrapassas sem te perder
As fronteiras do teu corpo

Passaste por cima do tempo
Eis-te uma nova mulher
Revelada até ao infinito.

Paul Éluard (tradução de Egito Gonçalves)

quarta-feira, 9 de julho de 2008

MATARAM A TUNA

Nos domingos antigos do bibe e pião
saía a Tuna do Zé Jacinto
tangendo violas e bandolins
tocando a marcha Almadanim.

Abriam janelas meninas sorrindo
parava o comércio pelas portas
e os campaniços de vir à vila
tolhendo os passos escutando em grupo.
Moços da rua tinham pé leve
o burro da nora da Quinta Nova
espetava orelhas apreensivo
Manuel da Água punha gravata!
Tudo mexia como acordado
ao som da marcha Almadanim
cantando a marcha Almadanim.

Quem não sabia aquilo de cor?
A gente cantava assobiava aquilo de cor...
(só a Marianita se enganava
ai só a Marianita se enganava
e eu matava-me a ensinar...)
que eu sabia aquilo de cor
inteirinha de cor
e para mim domingo não era domingo
era a marcha Almadanim!

Entanto as senhoras não gostavam
faziam troça dizendo coisas
e os senhores também não gostavam
faziam má cara para a Tuna:
- que era indecente aquela marcha
parecia coisa de doidos:
não era música era raiva
aquela marcha Almadanim.

Mas Zé Jacinto não desistia.
Vinha domingo e a Tuna na rua
enchendo as ruas enchendo as casas.
Voavam fitas coloridas
raspavam notas violentas
rasgava a Tuna o quebranto da vila
tangendo nas violas e bandolins
a heróica marcha Almadanim!

Meus companheiros do bibe e do pião
agora empregados no comércio
desenrolando fazenda medindo chita
agora sentados
dobrados nas secretárias do comércio
cabeças pendidas jovens-velhinhos
escrevendo no Deve e Haver somando somando
na vila quieta
sem nada
mais que o sossego das falas brandas...
- onde estão os domingos amarelos verdes azuis encarnados
vibrantes tangidos bandolins fitas violas gritos
da heróica marcha Almadanim?!

Ó meus amigos desgraçados
se a vida é curta e a morte infinita
despertemos e vamos
eia!
vamos fazer qualquer coisa de louco e heróico
como era a Tuna do Zé Jacinto
tocando a marcha Almadanim!

Manuel da Fonseca

quinta-feira, 3 de julho de 2008

POIS

O respeitoso membro de azevedo e silva
nunca perpenetrou nas intenções de elisa
que eram as melhores. Assim tudo ficou
em balbúrdias de língua cabriolas de mão

Assim tudo ficou até que não.

Azevedo e silva ao volante do mini
vê a elisa a ultrapassá-lo alguns anos depois
e pensa pensa com os seus travões
ah cabra eram tão puras as minhas intenções.

E a elisa passa rindo dentadura aos clarões.


alexandre o'neill

quarta-feira, 2 de julho de 2008

O POEMA ENSINA A CAIR

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.

Luiza Neto Jorge

terça-feira, 1 de julho de 2008

QUIETUDE

Que poema de paz agora me apetece!
Sereno,
Transparente.
A surgir somente
Um rio já cansado de correr,
Um doce entardecer,
Um fim de sementeira.
Versos como cordeiros a pastar,
Sem o meu nome, em baixo, a recordar
Os outros que cantei a vida inteira.


Miguel Torga

segunda-feira, 30 de junho de 2008

A CASA ONDE ÀS VEZES REGRESSO

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reuno baldes, este vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entra as mãos e o furor
uma viagen se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração

José Tolentino Mendonça

domingo, 29 de junho de 2008

LIBERDADE

O poema é
A liberdade

Um poema não se programa
Porém a disciplina
- Sílaba por sílaba -
O acompanha

Sílaba por sílaba
O poema emerge
- Como se os deuses o dessem
O fazemos

Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 28 de junho de 2008

ARDENDO NA SOMBRA

Tu estavas ali
perto da laranjeira.

(Porque havia
uma laranjeira
ao lado da casa.)

Estavas ali, as mãos,
iluminadas.
a luz vinha dos frutos
ardendo na sombra.

A laranjeira
ainda lá se encontra.
E tu? Ainda aí estás?

Ao longe erguia-se a poeira
quando o rebanho
ao fim da tarde
passava - era verão.

Só no verão
a poeira se levanta assim
sem haver vento.

No tanque, um fio débil
de água
servia para nos sentarmos
à beira do seu rumor.

Eu era pequeno
e tu uma mulher triste.
Essa tristeza é ainda
a minha.

Mas só ela.
E a laranjeira.

Eugénio de Andrade

quarta-feira, 25 de junho de 2008

IMPROVISO

Aos ventos que passavam,
Por não poder com elas
Atirei um punhado de palavras.
Se rápidas voavam,
Depressa regressavam
E tombavam
Como no céu, à vezes, as estrelas,
Ou pétalas de flor no chão.

E o meu poema, os ventos o dirão...

sexta-feira, 20 de junho de 2008

"Sacode as nuvens..."

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar,
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em porira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que tu respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.

Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 18 de junho de 2008

D. SEBASTIÃO, rei de Portugal

Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

Fernando Pessoa

segunda-feira, 16 de junho de 2008

O ESPIRITO

Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impernanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me osfuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:

Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica, Não falto.


Natália Correia

sábado, 14 de junho de 2008

AMADOR SEM COISA AMADA

Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.

Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.

Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
Não chego a profissional.

António Gedeão

sexta-feira, 13 de junho de 2008

O MENINO DE SUA MÃE

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
- Duas, de lado a lado –
Jaz morto e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
“O menino de sua mãe”.

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço … Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece,
O menino de sua mãe.

Fernando Pessoa, Cancioneiro.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

ANTO

ANTO

Caprichos de lilás, febres esguias,
Enlevos de Ópio – Íris-abandono…
Saudades de luar, timbre de Outono,
Cristal de essências langues, fugidias…

O pajem débil das ternuras de cetim,
O friorento das carícias magoadas;
O príncipe da ilhas transtornadas –
Senhor feudal das Torres de marfim…

Mário de Sá-Carneiro, 1915

segunda-feira, 9 de junho de 2008

10 DE JUNHO

Minha Pátria portuguesa,
Minha Terra atribulada,
Capaz de tanta grandeza,
Tantas vezes humilhada.

Esta gente que eu venero,
Este Povo sofredor,
Entre a glória e o desespero,
Quanta ilusão, quanta dor.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

DE TARDE

Naquele "pic-nic" de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

Cesário Verde (1855-1886)

terça-feira, 3 de junho de 2008

A LOIRA

...
Como a folha que a corrente
No torvelinho levou
Como a luz do sol poente
Que o mar ao longe apagou
Como um canto que morreu...
Assim sou eu.

Como a flor que desabrocha
Bela, vivíssima e pura,
N'alguma fenda da rocha,
O seio estéril e nú...
Assim és tu.
...

Narciso Lacerda, 1880

segunda-feira, 2 de junho de 2008

O OBJECTO POSSÍVEL

(...)
feita de som
e coisa nenhuma
a bruma nasce
da lenta combustão
da plaina ou pluma
no papel da árvore
ou na resina que estua -
há saliva e há talvez prece
há de certo suada pele
na mão que escreve
direita à tua
(....)

António Silva Pereira, 1980

domingo, 1 de junho de 2008

VELA

Em redor da luz
A casa sai da sombra
Intensamente atenta
Levemente espantada

Em redor da luz
A casa se concentra
Numa espera densa
E quase silabada

Em redor da chama
Que menor brisa doma
E que um suspiro apaga
A casa fica muda

Enquanto a noite antiga
Imensa e exterior
Tece os seus prodígios
E ordena seus milénios
De espaço e de silêncio
De treva e esplendor

Sophia de Mello Breyner

quarta-feira, 28 de maio de 2008

ESTA GENTE / ESSA GENTE

O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente

Gente que seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente

Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente

Gente que enterre o dente
que fira de unhas e dente
e mostre o dente potente
ao prepotente

O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente

Ana Hatherly

terça-feira, 27 de maio de 2008

[PARA SER GRANDE, SÊ INTEIRO: NADA]

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Quero acabar entre rosas, porque as amei na infância.
Os crisântemos de depois, desfolhei-os a frio.
Falem pouco, devagar.
Que eu não oiça, sobretudo com o pensamento.
O que quis? Tenho as mãos vazias,
Crispadas flebilmente sobre a colcha longínqua.
O que pensei? Tenho a boca seca, abstracta.
O que vivi? Era tão bom dormir!

Álvaro de Campos

domingo, 25 de maio de 2008

CIDADE

Na cidade, quem olha para o céu?
- É preciso que passe um avião...
Quem me dera o silêncio, a solidão,
Onde pudesse, alguma vez, ser eu!

Na cidade nasci; nela nasceu
A minha dispersiva inquietação;
E o meu tumultuoso coração
Tem o pulsar caótico de seu.

Ah! quem me dera, em vez da gasolina,
O cheiro da terra húmida, a resina,
A flores do campo, a leite, a maresia!

Em vez da fria luz que me alumia,
O luar, sobre o mar, em tremulina...
- Divina mão compondo uma poesia.

Carlos Queiroz

sábado, 24 de maio de 2008

IMPROVISO

Aos ventos que passavam,
Por não poder com elas
Atirei um punhado de palavras.
Se rápidas voavam,
Depressa regressavam
E tombavam
Como no céu, às vezes, as estrelas,
Ou pétalas de flor no chão.

E o meu poema, os ventos o dirão...


José Régio

sexta-feira, 23 de maio de 2008

ESPERANÇA

O poema quer nascer das trevas.
Está nas palavras, e não as sei.
É como um filho que não tem caminho
No ventre da mãe.
Dói,
Dói,
Mas a negar-se teimosamente
A todos os acenos libertadores
Do desespero dilacerado.
No silêncio cansado
E paciente
Canta um galo vidente.
E diz que cada dia
Que anuncia
É sempre um dia novo
De renovo
E poesia.

Miguel Torga

quinta-feira, 22 de maio de 2008

DILETANTEMENTE

este caso
por acaso
concordante
com o atraso
dilatado
doutro caso
foi a causa
doutra coisa
discordante
duma outra
arrelia
massacrante

Faustino Martins

quarta-feira, 21 de maio de 2008

GESTOS

Lentamente
aproximou a mão.
Colheu um fruto.
Com gestos ancestrais
retirou-lhe a casca.
Levou-o à boca,
enquanto a língua
pesava o gosto
maduro e denso.


Tudo fazia sentido.
Tudo estava certo.

Como um saber
antigo,
exacto.

Faustino Martins

terça-feira, 20 de maio de 2008

PRIMEIRO POEMA

Sem horizonte ou lua,
sem vento nem bandeira.
L. von Maaske


A palavra, vida inteira, mata.
O seu silêncio não fala nem cala: ri.
Sem antes, nem depois, nem agora.
É o infindável que fala.
Não o ouças: ouve-o.
Oh, falar sem ouvir,
como ri o riso
pleno dos mortos,
os meus e os teus mortos
debaixo de nós.

Manuel António Pina (1943)

segunda-feira, 19 de maio de 2008

CANÇÃO

Sol nulo dos dias vãos,
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
A quem não entras na alma!

Que ao menos a mão, roçando
A mão que por ela passe,
Com externo calor brando
O frio da alma disfarce!

Senhor, já que dor é nossa
E a fraqueza que ela tem,
Dá-nos ao menos a força
De a não mostrar a ninguém!

Fernando Pessoa

domingo, 18 de maio de 2008

AS ÁRVORES E OS LIVROS

As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é copas) e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas.

E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras.

Jorge Sousa Braga (Herbário – 1957)

sábado, 17 de maio de 2008

PROVINCIANAS

Mas nem tudo são descantes
Por esses longos caminhos,
Entre favais palpitantes
Há solos bravos, maninhos,
Que expulsam seus habitantes!

É nesta quadra d’amores
Que emigram os jornaleiros,
Ganhões e trabalhadores!
Passam clãs de forasteiros
Nas terras de lavradores.

Tal como existem mercados
Ou feiras, semanalmente,
Para comprarmos os gados,
Assim há praças de gente
Pelos domingos calados!

Cesário Verde

sexta-feira, 16 de maio de 2008

AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa

quinta-feira, 15 de maio de 2008

O VIANDANTE

Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
Caíram espigas da haste,
foi-se o galope do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se a noite, foi-se o dia,
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.

Carlos de Oliveira

quarta-feira, 14 de maio de 2008

À MÚSICA

Melodia, melodia …
Como é simples e tu vens!
Como nasces da harmonia
Das formas que nunca tens!

Como vive a eternidade
Na fugidia presença
Da tua realidade
Irreal logo à nascença!

Não se vê quem te levanta
Nem quem tece o teu destino;
Mas alguém te desencanta,
Te revela e te faz hino
Do nosso amor, melodia!

Vai cantando!
Vai passando e vai durando,
Asa branca deste dia!


Miguel Torga

À MÚSICA

Melodia, melodia …
Como é simples e tu vens!
Como nasces da harmonia
Das formas que nunca tens!

Como vive a eternidade
Na fugidia presença
Da tua realidade
Irreal logo à nascença!

Não se vê quem te levanta
Nem quem tece o teu destino;
Mas alguém te desencanta,
Te revela e te faz hino
Do nosso amor, melodia!

Vai cantando!
Vai passando e vai durando,
Asa branca deste dia!


Miguel Torga

terça-feira, 13 de maio de 2008

A PEDRA

A pedra é bela, opaca,
peso-a gostosamente como um pão.
É escura, baça, terrosa, avermelhada,
polvilhada de cinza.
Contemplo-a: é evidente, impenetrável,
preciosa.

António Ramos Rosa

segunda-feira, 12 de maio de 2008

QUANDO

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 11 de maio de 2008

NAVEGAÇÃO SEGURA

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,


pelo silêncio fascinadas.

Eugénio de Andrade

quinta-feira, 8 de maio de 2008

SE EU PUDESSE BEBER-TE

Se eu pudesse beber-te, ó noite,
Até encontrar o teu gosto,
Ou mordendo a ponta do açoite
Da tua treva no meu rosto,

Achasse a planície de lume
De que és uma aresta de estrelas
E sonhando sem peso e volume
Fosse um sonho de chão a tecê-las

E na praia de um trilo sem flauta,
Instrumento das harpas do fundo
Duma água escorrida da pauta
Da manhã mais antiga do mundo,

Me estendesses, ó noite florida
Das sementes que trazes no punho,
Uma adolescência impelida
Pelo arco das brisas de Junho!

Natália Correia

quarta-feira, 7 de maio de 2008

E TUDO ERA POSSÍVEL

Na minha juventude antes de ter saído
de casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela tivesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer


Ruy Belo

terça-feira, 6 de maio de 2008

LETREIRO

Porque não sei mentir,
Não vos engano:
Nasci subversivo.
A começar por mim - meu principal motivo
De insatisfação -,
Diante de qualquer adoração,
Ajuízo.
Não me sei conformar.
E saio, antes de entrar,
De cada paraíso.

Miguel Torga

sábado, 26 de abril de 2008

POEMA

Ai, há quanto tempo eu parti chorando
Deste meu saudoso, carinhoso lar! ...
Foi há vinte? ... Há trinta? Nem eu sei já quando! ...
Minha velha ama, que me estás fitando,
Canta-me cantigas para me eu lembrar!
-----
Canta-me cantigas, manso, muito manso ...
Tristes, muito tristes, como à noite o mar ...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
Que a minha alma durma, tenha paz, descanso,
Quando a Morte, em breve, m'a vier buscar! ...

Guerra Junqueiro, do livro Os Simples, de 1892

quarta-feira, 23 de abril de 2008

DECLARAÇÃO

Teorias são brinquedos
Que, por mim, não tomo a sério.
Tomo a sério os meus enredos.
Crer ...só sei crer no Mistério.
De doutrinas não me importo!
Sinto-me bem no mar alto.
Só me recolho ao meu porto.
Convidam-me e sempre eu falto.
De escolas, não sou aluno.
Se comunico é em verso.
Sou muito diverso,
E uno.

José Régio

quarta-feira, 16 de abril de 2008

FIM

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andalusa ...
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro!


Mário de Sá-Carneiro

FIM

Mário de Sá-Carneiro

domingo, 13 de abril de 2008

OS ARES

Os ares
como são furtivos

Como os diria
calmos
quando não faltam
na respiração

Quando são
vento melhor
que o pulmão
que o calor

Respiram consigo
os ares claros
movem a vida
raros

Ares densos não são esses
para quem sente denso
o coração

Chamai-lhes vento
e claramente os ares
são roucos
se então
eles trespassam
a pele da boca

Fiama Hasse Pais Brandão

terça-feira, 8 de abril de 2008

AS PALAVRAS

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são de noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?


Eugénio de Andrade

segunda-feira, 7 de abril de 2008

SONETO DO REGRESSO

Volto contigo à terra da ilusão,
mas o lar de meus pais levo-o o vento
e se levou a pedra dos umbrais
o resto é esquecimento:
procurar o amor neste deserto
onde tudo me ensina a viver só
e a água do teu nome se desfaz
em sílabas de pó
é procurar a morte apenas,
o perfume daquelas
longíquas açucenas
abertas sobre o mundo como estrelas:
despenhar no meu sono de criança
inutilmente a chuva da lembrança.

Carlos de Oliveira

quinta-feira, 3 de abril de 2008

MAR SONORO

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailado do meu sonho,
Que momentos há em que suponho
Seres um milagre criado só para mim.

Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 31 de março de 2008

METAMORFOSE

Para a minha alma eu queria uma torre como esta,
assim alta,
assim de névoa acompanhando o rio.

Estou tão longe da margem que as pessoas passam
e as luzes se refectem na água.

E, contudo, a margem não pertence ao rio
nem o rio está em mim como a torre estaria
se eu a soubesse ter ...
uma luz desce o rio
gente passa e não sabe
que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem
as nuvens não passem
tão alta tão alta
que a solidão possa tornar-se humana.


Jorge de Sena

quinta-feira, 27 de março de 2008

NOMEIO O MUNDO

Com medo de o perder nomeio o mundo,
Seus quantos e qualidades, seus objectos,
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos.

Nomeei as coisas e fiquei contente:
Prendi a frase ao texto do universo.
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente,
Em cada pausa e pulsação um verso.

Vitorino Nemésio

quarta-feira, 26 de março de 2008

FICÇÕES DO INTERLÚDIO / ODES DE RICARDO REIS

14-2-1933

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

2-3-1933

Quero ignorado, e calmo
Por ignorado, e próprio
Por calmo, encher meus dias
De não querer mais deles.

Aos que a riqueza toca
O ouro irrita a pele.
Aos que a fama bafeja
Embacia-se a vida.

Aos que a felicidade
É sol, virá a noite.
Mas ao que nada espera
Tudo o que vem é grato.

Fernando Pessoa

terça-feira, 25 de março de 2008

ALENTEJO

Outro é o tempo
outra a medida.

Tão grande a página
tão curta a escrita.

Entre o achigã e a perdiz
entre chaparro e choupo

tanto país
e tão pouco.

Manuel Alegre

segunda-feira, 24 de março de 2008

MOMENTO

Quem, nos meus olhos ardentes,
Na minha testa cansada,
Perpassa os dedos clementes,
Poisa a mão fresca orvalhada...?

Talvez a brisa da tarde,
Que passa e não faz alarde...

Talvez a brisa da tarde!

Sim, só a brisa; e mais nada.

José Régio

domingo, 23 de março de 2008

PUDESSE EU

“Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
P’ra poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes.”

Sophia de Mello Breyner Andresen


Ter a consciência dos limites não é conformar-se na pequenez duma frágil condição.
É a assunção plena da humanidade duma vida que constantemente nos coloca perante novas opções, algumas delas não possíveis ou, pelo menos, não desejáveis.
Porque não somos deuses, devemos escolher. Não escolher é assumir o orgulho louco de pretender alcançar o que só é possível na imaginação ditada pelo sonho.
Devemos aceitar o sonho, mas temos o dever de optar com base na razão.

sexta-feira, 21 de março de 2008

HOMEM

“É no silêncio do caminho aberto:

Quanto maior a alma maior o deserto
Maior a sede e a miragem
Do mundo à nossa imagem”

Luís Veiga Leitão



O homem é a única medida certa para definir com precisão a grandeza e o valor da vida.
Só no homem encontramos a ideia da imensidão do universo e a crença na eternidade dos deuses.

quarta-feira, 19 de março de 2008

OS DEUSES

"Nasceram, como um fruto, da paisagem.
A brisa dos jardins, a luz do mar,
O branco das espumas e o luar
Extasiados estão na sua imagem."

Sophia de Mello Breyner Andresen


- Não há como duvidar de que os deuses existam.
Mas a dúvida poderá, inevitavelmente, recair sobre se deles teve origem tudo o que existe, ou se foram criados à imagem e semelhança do pensamento dos homens.

segunda-feira, 10 de março de 2008

ATITUDE

Acaba com a imoralidade de veres apenas defeito na acção dos que não merecem a tua estima.
Torna a tua critica grande, generosa, civilizada e civilizadora.
Censura frontalmente o mal, mas aplaude com igual intensidade o que te parecer bem realizado.
Acusa as faltas, mas não as inventes com intenções caluniadoras.
Não te alegres pelos erros dos teus adversários; pois que é mais nobre concorrer para que eles se emendem, do que procurar motivos para uma constante censura.
A mais nobre das atitudes é sacrificar o amor próprio, as antipatias pessoais e, sobretudo, o desejo embriagador de vingança, aos valores mais elevados da verdade e do dever de ser justo.

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

REFLEXÃO

Não é certo que a escolha fundamental seja entre o dever e o prazer.
É possivel obter o prazer cumprindo e isso é mais um acto de razão do que um gesto de opção.
A insanidade de perseguir obcessivamente o prazer leva à frustação de nunca o conseguir.
O prazer nunca se alcança porque nunca se satisfaz, apenas se persegue.
Um desejo satisfeito é apenas o ponto de origem de um novo desejo.
Para quê perseguir o que nunca se alcança plenamente?
A única maneira de alcançar a plenitude e o equilibrio do estar e do ser, está na voluntária abstinência de procurar o prazer.
Só o prazer que não se persegue, o que naturalmente cruza o nosso caminho, permite alcançar uma atitude perdurável para definir o nosso modo de viver.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

ESPERANÇA

Quando o cansaço impera,
Quando o desânimo desmobiliza,
Quando a vontade de continuar desfalece,
Quando não há força para reagir,
Quanto apetece de tudo desitir...
Pára!
Espera que haja condições!
Para de novo te ergueres e voltares a partir...