quarta-feira, 16 de julho de 2008

O BEIJO

Ainda toda quente da roupa tirada
Fechas o olhos e moves-te
Como se move um canto que nasce
Vagamente mas em toda a parte

Perfumada e saborosa
Ultrapassas sem te perder
As fronteiras do teu corpo

Passaste por cima do tempo
Eis-te uma nova mulher
Revelada até ao infinito.

Paul Éluard (tradução de Egito Gonçalves)

quarta-feira, 9 de julho de 2008

MATARAM A TUNA

Nos domingos antigos do bibe e pião
saía a Tuna do Zé Jacinto
tangendo violas e bandolins
tocando a marcha Almadanim.

Abriam janelas meninas sorrindo
parava o comércio pelas portas
e os campaniços de vir à vila
tolhendo os passos escutando em grupo.
Moços da rua tinham pé leve
o burro da nora da Quinta Nova
espetava orelhas apreensivo
Manuel da Água punha gravata!
Tudo mexia como acordado
ao som da marcha Almadanim
cantando a marcha Almadanim.

Quem não sabia aquilo de cor?
A gente cantava assobiava aquilo de cor...
(só a Marianita se enganava
ai só a Marianita se enganava
e eu matava-me a ensinar...)
que eu sabia aquilo de cor
inteirinha de cor
e para mim domingo não era domingo
era a marcha Almadanim!

Entanto as senhoras não gostavam
faziam troça dizendo coisas
e os senhores também não gostavam
faziam má cara para a Tuna:
- que era indecente aquela marcha
parecia coisa de doidos:
não era música era raiva
aquela marcha Almadanim.

Mas Zé Jacinto não desistia.
Vinha domingo e a Tuna na rua
enchendo as ruas enchendo as casas.
Voavam fitas coloridas
raspavam notas violentas
rasgava a Tuna o quebranto da vila
tangendo nas violas e bandolins
a heróica marcha Almadanim!

Meus companheiros do bibe e do pião
agora empregados no comércio
desenrolando fazenda medindo chita
agora sentados
dobrados nas secretárias do comércio
cabeças pendidas jovens-velhinhos
escrevendo no Deve e Haver somando somando
na vila quieta
sem nada
mais que o sossego das falas brandas...
- onde estão os domingos amarelos verdes azuis encarnados
vibrantes tangidos bandolins fitas violas gritos
da heróica marcha Almadanim?!

Ó meus amigos desgraçados
se a vida é curta e a morte infinita
despertemos e vamos
eia!
vamos fazer qualquer coisa de louco e heróico
como era a Tuna do Zé Jacinto
tocando a marcha Almadanim!

Manuel da Fonseca

quinta-feira, 3 de julho de 2008

POIS

O respeitoso membro de azevedo e silva
nunca perpenetrou nas intenções de elisa
que eram as melhores. Assim tudo ficou
em balbúrdias de língua cabriolas de mão

Assim tudo ficou até que não.

Azevedo e silva ao volante do mini
vê a elisa a ultrapassá-lo alguns anos depois
e pensa pensa com os seus travões
ah cabra eram tão puras as minhas intenções.

E a elisa passa rindo dentadura aos clarões.


alexandre o'neill

quarta-feira, 2 de julho de 2008

O POEMA ENSINA A CAIR

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede

até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.

Luiza Neto Jorge

terça-feira, 1 de julho de 2008

QUIETUDE

Que poema de paz agora me apetece!
Sereno,
Transparente.
A surgir somente
Um rio já cansado de correr,
Um doce entardecer,
Um fim de sementeira.
Versos como cordeiros a pastar,
Sem o meu nome, em baixo, a recordar
Os outros que cantei a vida inteira.


Miguel Torga