sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Cântico do desencanto

De novo o contentamento desancantado
De novo a obrigação de sermos amáveis, presenteadores e bonzinhos
De novo a hipócrita complacência de  aceitarmos e oferecermos presentinhos

E, o Natal, a festa da família...
Jesus nasceu, nasceu o Deus menino!
E que mudou no mundo desde então?
Tudo, menos o homem que continua tão mesquinho...

E amanhã o Ano Novo!
Novo porquê?
É apenas mais um ano...
Como cada dia é apenas mais um dia.

Mas sentimo-nos tão bem a desejar o bem aos outros...
Como?
Se nos outros dias, todos os outros dias nos fazemos tanto mal?

Será por isso que tanto nos preocupamos a celebrar o Ano Novo e o Natal?

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A Mulher Mais Bonita do Mundo




 estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.

entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.

entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.

há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.

estás tão bonita hoje.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.

José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"

domingo, 11 de dezembro de 2011

A um Jovem Poeta



Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser

que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças

como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.

Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.

Manuel António Pina, in "Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança"

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

“dois pequenos poemas sem título”


1.
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.


2.
Que pode uma criatura senão,
entre outras criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

POEMAS

I.                     
fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.


II.                   
o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.
                                                 
José Luís Peixoto

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Chico


Talvez não fosses forte
para a felicidade,
nem para o medo.

Olha as pessoas felizes:
ocultam-se na felicidade
como em casa, erguem

muros, fecham as janelas,
o medo
é a sua fortaleza.

O que disputam à morte
é maior que elas,
a morte não lhes basta.

Manuel António Pina, in "Cuidados Intensivos"

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Passado, Presente, Futuro


Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.

Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
Rã fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.

Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim.

José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"

sábado, 26 de novembro de 2011

Adeus Português


Nos teus olhos altamente perigosos  
vigora ainda o mais rigoroso amor  
a luz dos ombros pura e a sombra  
duma angústia já purificada 
 
Não tu não podias ficar presa comigo  
à roda em que apodreço  
apodrecemos 
a esta pata ensanguentada que vacila  
quase medita 
e avança mugindo pelo túnel  
de uma velha dor 
 
Não podias ficar nesta cadeira  
onde passo o dia burocrático  
o dia-a-dia da miséria  
que sobe aos olhos vem às mãos  
aos sorrisos 
ao amor mal soletrado  
à estupidez ao desespero sem boca  
ao medo perfilado  
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca  
do modo funcionário de viver 
 
Não podias ficar nesta casa comigo 
em trânsito mortal até ao dia sórdido  
canino 
policial 
até ao dia que não vem da promessa  
puríssima da madrugada  
mas da miséria de uma noite gerada  
por um dia igual 
 
Não podias ficar presa comigo 
à pequena dor que cada um de nós  
traz docemente pela mão  
a esta pequena dor à portuguesa  
tão mansa quase vegetal 
 
Mas tu não mereces esta cidade não mereces  
esta roda de náusea em que giramos  
até à idiotia 
esta pequena morte 
e o seu minucioso e porco ritual  
esta nossa razão absurda de ser 
 
Não tu és da cidade aventureira 
da cidade onde o amor encontra as suas ruas  
e o cemitério ardente  
da sua morte 
tu és da cidade onde vives por um fio  
de puro acaso 
onde morres ou vives não de asfixia  
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro 
sem a moeda falsa do bem e do mal 
 
Nesta curva tão terna e lancinante 
que vai ser que já é o teu desaparecimento  
digo-te adeus  
e como um adolescente  
tropeço de ternura  
por ti 
 
                      Alexandre O'Neill