terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Se houvesse degraus na terra...



Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.


Herberto Helder, Luís Bernardes de Oliveira. Este que alguns consideram entre os maiores poetas portugueses da actualidade, é de ascendência judaica, natural da cidade do Funchal onde nasceu em 23 de Novembro de 1930. Frequentou a Faculdade de Letras em Coimbra. Depois, já em Lisboa, foi jornalista, apresentador de programas radiofónicos e tradutor. Viajou por vários países da Europa, trabalhando em coisas que nada terão a ver com a literatura. Sempre recusou prémios, incluindo o Prémio Pessoa que lhe foi atribuído em 1994. Algo misantropo, nunca concedeu entrevistas.

A sua poesia liga-se a um surrealismo algo tardio, evocando um universo de mistério algo místico e edipiano. "Passos em volta" é provavelmente a sua obra de ficção mais conhecida. Em "Poesia Toda", sua antologia poética pessoal, que passou a intitular "Ofício Cantante", tem vindo a fazer uma depuração de poemas de uma para outra das edições.

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