Projecto de
Sucessão Para o Mário Henrique |
Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua continuar deitado até se destruir a cama permanecer de pé até a polícia vir permanecer sentado até que o pai morra Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária amar continuamente a posição vertical e continuamente fazer ângulos rectos Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora pôr-se nu em casa até a escultora dar o sexo fazer gestos no café até espantar a clientela pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia contar histórias obscenas uma noite em família narrar um crime perfeito a um adolescente loiro beber um copo de leite e misturar-lhe nitro-glicerina deixar fumar um cigarro só até meio Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias beber-se por um copo de oiro e sonharem-se Índias. António Maria Lisboa poesia Assírio & Alvim 1995 |
segunda-feira, 29 de outubro de 2012
PORJECTO DE SUCESSÃO
sexta-feira, 26 de outubro de 2012
AINDA NÃO
Ainda não |
não há dinheiro para partir de vez não há espaço de mais para ficar ainda não se pode abrir uma veia e morrer antes de alguém chegar ainda não há uma flor na boca para os poetas que estão aqui de passagem e outra escarlate na alma para os postos à margem . ainda não há nada no pulmão direito ainda não se respira como devia ser ainda não é por isso que choramos às vezes e que outras somos heróis a valer ainda não é a pátria que é uma maçada nem estar deste lado que custa a cabeça ainda não há uma escada e outra escada depois para descer à frente de quem quer que desça . ainda não há camas só para pesadelos ainda não se ama só no chão ainda não há uma granada ainda não há um coração António José Forte Uma Faca nos Dentes Prefácio de Herberto Helder Parceria A.M. Pereira Livraria Editora, Lda. |
terça-feira, 23 de outubro de 2012
NESTA ÚLTIMA TARDE EM QUE RESPIRO
Nesta última tarde em que respiro A justa luz que nasce das palavras E no largo horizonte se dissipa Quantos segredos únicos, precisos, E que altiva promessa fica ardendo Na ausência interminável do teu rosto. Pois não posso dizer sequer que te amei nunca Senão em cada gesto e pensamento E dentro destes vagos vãos poemas; E já todos me ensinam em linguagem simples Que somos mera fábula, obscuramente Inventada na rima de um qualquer Cantor sem voz batendo no teclado; Desta falta de tempo, sorte, e jeito, Se faz noutro futuro o nosso encontro. António Franco Alexandre In Uma fábula Assírio & Alvim, Editores |
sábado, 20 de outubro de 2012
MEMÓRIA SOBRE OS TEUS OLHOS
Magníficos. como os jactos que aguardam no aeroporto o iminente sinal da partida, seus grandes olhos imensos escorvam, impacientes, o subsolo da imagem pressentida. Perfurantes como as brocas dos mineiros, pontas de aço-vanádio que o cubro alcançam sem perder o gume, um fogo o olhar o queima, um mar invade-o, um lume feito de água, água de lume. Súbito, seus grandes olhos imensos descolam e levantam voa. Ei-los que sobem. Seu movimento é como se apenas as coisas deles se afastassem, é como se move o tempo, sem agravo nem estrago, como boiam as folhas na dormência do lago, como bate o coração do homem enterrado no chão. Na estática subida a que se entregam são o próprio silêncio em que navegam, são a curva do espaço, a quarta dimensão. Cá em baixo, onde as superfícies se avaliam multiplicando pi por érre dois, um formigueiro de bois desenha na planície coloridos talhões. Cumprem-se as sementeiras. As cores são as bandeiras; os regos, os limites das nações. Um rabiar de células, Cultura de bactérias num capacete de aço, ziguezagueiam, obstinadas como libélulas, num charco de sargaço. Entretanto, seus grandes olhos imensos olham, e olhando, no desígnio frontal que não hesita nem disfarça, com linhas de olhos vão bordando a talagarça. Sento-me à secretária, preparo-a, limpo-a, esfrego-a na aflita busca do mais puro espaço, e com o esquadro e a régua, o lápis e o compasso, construo os olhos d'Ela. Deliberada e escrupulosamente ergue-se a construção de arquitectura mansa, quase cinicamente, como quem premedita uma vingança. (Aliás o engano, a ilusão, a mentira, a falsidade, o perjúrio, a invenção, tudo, em Amor, é verdade.) Eis os mais lindos olhos deste mundo. O Amor os fez. Proas de galeões de velas pandas, meninas a correr que chegam às varandas olhando o mundo pela primeira vez. Dou-lhes uns toques nas íris, um tempero na plácida inocência, um miligrama de cianeto, morte sem desespero, acicate da humana permanência. Sobre o fundo sombrio um tom de folha seca de plátano, uns veios de clorofila, mancha irisada em redor da pupila, óleo vertido no asfalto da estrada. Encosto o rosto às mãos, e embevecido contemplo a construção de linhas, e finjo-me esquecido como se não soubesse que são minhas. Como se não soubesse comovo-me e entrego-me no sorriso total, Construo o meu real conforme me apetece. António Gedeão Obra Poética Edições João Sá da Costa 2001 |
quarta-feira, 17 de outubro de 2012
CONSTELAÇÕES
As estrelas têm um filamento de sangue agarrado ao corpo da Terra. Capilaridade da memória. A terra arranca do chão árvores e astros. Pensa e ama. Pensar é astralizar a luz física. Amar é corromper as formas do dia. Exilá-Ias de noite no céu. As estrelas são o resto imperceptível do sangue da terra. Ideias que vivem. A matéria pensa. A Terra quando dorme liberta cintilações celestes. O homem por sua vez desprende sonhos. A terra é o leito onde o homem doente se deita. Sobem do seu corpo lenços brancos. Cada cadáver liberta a fIutuação dum tenuíssimo pano de linho. Deixemo-nos morrer. Recostados na terra anoitecidos pela morte e pelo amor sobe de nós a palpitação insensível dum sol. É por isso que as estrelas são na terra o que de nós no ar se evola. Animam-se de vida sensível na mais pura abstracção das formas. Ao ser a memória dum corpo seremos no Universo a matéria estelar. Fogos, luminosos, inconformes. António Cândico Franco Poesia Digital 7 poetas dos anos 80 Organização de Amadeu Baptista e José-Emílio Nelson Campo das Letras |
quinta-feira, 11 de outubro de 2012
À MEMÓRIA DE FERNANDO PESSOA
Se eu pudesse fazer com que viesses Todos os dias, como antigamente, Falar-me nessa lúcida visão - Estranha, sensualíssima, mordente; Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses, Meu pobre e grande e genial artista, O que tem sido a vida - esta boémia Coberta de farrapos e de estrelas, Tristíssima, pedante, e contrafeita, Desde que estes meus olhos numa névoa De lágrimas te viram num caixão; Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses, Voltávamos à mesma: Tu, lá onde Os astros e as divinas madrugadas Noivam na luz eterna de um sorriso; E eu, por aqui, vadio de descrença Tirando o meu chapéu aos homens de juízo... Isto por cá vai indo como dantes; O mesmo arremelgado idiotismo Nuns senhores que tu já conhecias - Autênticos patifes bem falantes... E a mesma intriga: as horas, os minutos, As noites sempre iguais, os mesmos dias, Tudo igual! Acordando e adormecendo Na mesma cor, do mesmo lado, sempre O mesmo ar e em tudo a mesma posição De condenados, hirtos, a viver - Sem estímulo, sem fé, sem convicção... Poetas, escutai-me. Transformemos A nossa natural angústia de pensar - Num cântico de sonho!, e junto dele, Do camarada raro que lembramos, Fiquemos uns momentos a cantar! António Botto Poema de Cinza As Canções de António Botto Editorial Presença 1999 |
segunda-feira, 8 de outubro de 2012
POEMA 16
A luz de Setembro já não besoura aloura os corpos mergulham no oceano espalhando gotas de metal Vozes chegam no arrastar das ondas o amarelo ensopa-se de azul Mergulhemos sem pressa marcando álacres os passos o mar apaga marca as passadas apaga O sol é pouco morre vermelho sobre os dedos das amendoeiras Sustém a cabeça nas ondas bebe a luz e os corpos António Borges Coelho Linha de Água Ao Rés da Terra Caminho Da Poesia 2002 |
sexta-feira, 5 de outubro de 2012
APONTAMENTO
A minha alma
partiu-se como um vaso vazio. Caiu pela escada excessivamente abaixo. Caiu das mãos da criada descuidada. Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso. Asneira? Impossível? Sei lá! Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu. Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir. Fiz barulho na queda como um vaso que se partia. Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada. E fitam os cacos que a criada deles fez de mim. Não se zanguem com ela. São tolerantes com ela. O que era eu um vaso vazio? Olham os cacos absurdamente conscientes, Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles. Olham e sorriem. Sorriem tolerantes à criada involuntária. Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas. Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros. A minha obra? A minha alma principal? A minha vida? Um caco. E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem por que ficou ali. Álvaro de Campos, 1929 |
terça-feira, 2 de outubro de 2012
NUVENS DA TARDE
Aquelas nuvens, que voam, Ninguém pode pôr-lhes mão... São como as horas que soam, E as aves, que em bando vão... Como a folha desprendida, E como os sonhos da vida, Aquelas nuvens que voam... Às vezes o sol, que as doura, Parece à glória levá-las Mas surge o vento e, numa hora, Já ninguém pode avistá-las! É um convite enganoso, Um escárnio luminoso, Às vezes, o sol que as doura! Tantos castelos caídos! Tantas visôes dissipadas! Gigantes, heróis perdidos, Que mal sustêm as espadas! Faz pena ver, lá do monte, Nas ruínas do horizonte, Tantos castelos caídos! E as donzelas lastimosas, Que vão fugindo transidas! Quem fogem elas ansiosas? Que buscam elas perdidas? Ó romances fugidios! Vejo os tiranos sombrios, E as donzelas lastimosas! Aquelas nuvens que vemos, Esses poemas aéreos, São os sonhos que nós temos, Nossos intímos mistérios! São espelhos flutuantes Das nossas dores constantes Aquelas nuvens que vemos... Nossa alma vai-se com elas, À procura, quem o sabe? Doutras esferas mais belas, Já que no mundo não cabe... Voando, sem dar um grito, Através desse infinito, Nossa alma vai-se com elas! Antero de Quental Primaveras Românticas prefácio de Nuno Júdice colares editora |
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