A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reuno baldes, este vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos
Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entra as mãos e o furor
uma viagen se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo
Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração
José Tolentino Mendonça
segunda-feira, 30 de junho de 2008
domingo, 29 de junho de 2008
LIBERDADE
O poema é
A liberdade
Um poema não se programa
Porém a disciplina
- Sílaba por sílaba -
O acompanha
Sílaba por sílaba
O poema emerge
- Como se os deuses o dessem
O fazemos
Sophia de Mello Breyner Andresen
A liberdade
Um poema não se programa
Porém a disciplina
- Sílaba por sílaba -
O acompanha
Sílaba por sílaba
O poema emerge
- Como se os deuses o dessem
O fazemos
Sophia de Mello Breyner Andresen
sábado, 28 de junho de 2008
ARDENDO NA SOMBRA
Tu estavas ali
perto da laranjeira.
(Porque havia
uma laranjeira
ao lado da casa.)
Estavas ali, as mãos,
iluminadas.
a luz vinha dos frutos
ardendo na sombra.
A laranjeira
ainda lá se encontra.
E tu? Ainda aí estás?
Ao longe erguia-se a poeira
quando o rebanho
ao fim da tarde
passava - era verão.
Só no verão
a poeira se levanta assim
sem haver vento.
No tanque, um fio débil
de água
servia para nos sentarmos
à beira do seu rumor.
Eu era pequeno
e tu uma mulher triste.
Essa tristeza é ainda
a minha.
Mas só ela.
E a laranjeira.
Eugénio de Andrade
perto da laranjeira.
(Porque havia
uma laranjeira
ao lado da casa.)
Estavas ali, as mãos,
iluminadas.
a luz vinha dos frutos
ardendo na sombra.
A laranjeira
ainda lá se encontra.
E tu? Ainda aí estás?
Ao longe erguia-se a poeira
quando o rebanho
ao fim da tarde
passava - era verão.
Só no verão
a poeira se levanta assim
sem haver vento.
No tanque, um fio débil
de água
servia para nos sentarmos
à beira do seu rumor.
Eu era pequeno
e tu uma mulher triste.
Essa tristeza é ainda
a minha.
Mas só ela.
E a laranjeira.
Eugénio de Andrade
quarta-feira, 25 de junho de 2008
IMPROVISO
Aos ventos que passavam,
Por não poder com elas
Atirei um punhado de palavras.
Se rápidas voavam,
Depressa regressavam
E tombavam
Como no céu, à vezes, as estrelas,
Ou pétalas de flor no chão.
E o meu poema, os ventos o dirão...
Por não poder com elas
Atirei um punhado de palavras.
Se rápidas voavam,
Depressa regressavam
E tombavam
Como no céu, à vezes, as estrelas,
Ou pétalas de flor no chão.
E o meu poema, os ventos o dirão...
sexta-feira, 20 de junho de 2008
"Sacode as nuvens..."
Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar,
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.
Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em porira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que tu respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Sacode as aves que te levam o olhar,
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.
Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em porira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que tu respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.
Sophia de Mello Breyner Andresen
quarta-feira, 18 de junho de 2008
D. SEBASTIÃO, rei de Portugal
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
Fernando Pessoa
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
Fernando Pessoa
segunda-feira, 16 de junho de 2008
O ESPIRITO
Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impernanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me osfuscam macilentas;
E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.
Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:
Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica, Não falto.
Natália Correia
Impernanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me osfuscam macilentas;
E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.
Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:
Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica, Não falto.
Natália Correia
sábado, 14 de junho de 2008
AMADOR SEM COISA AMADA
Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.
Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.
Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
Não chego a profissional.
António Gedeão
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.
Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.
Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
Não chego a profissional.
António Gedeão
sexta-feira, 13 de junho de 2008
O MENINO DE SUA MÃE
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
- Duas, de lado a lado –
Jaz morto e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
“O menino de sua mãe”.
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço … Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece,
O menino de sua mãe.
Fernando Pessoa, Cancioneiro.
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
- Duas, de lado a lado –
Jaz morto e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
“O menino de sua mãe”.
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço … Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece,
O menino de sua mãe.
Fernando Pessoa, Cancioneiro.
quinta-feira, 12 de junho de 2008
ANTO
ANTO
Caprichos de lilás, febres esguias,
Enlevos de Ópio – Íris-abandono…
Saudades de luar, timbre de Outono,
Cristal de essências langues, fugidias…
O pajem débil das ternuras de cetim,
O friorento das carícias magoadas;
O príncipe da ilhas transtornadas –
Senhor feudal das Torres de marfim…
Mário de Sá-Carneiro, 1915
Caprichos de lilás, febres esguias,
Enlevos de Ópio – Íris-abandono…
Saudades de luar, timbre de Outono,
Cristal de essências langues, fugidias…
O pajem débil das ternuras de cetim,
O friorento das carícias magoadas;
O príncipe da ilhas transtornadas –
Senhor feudal das Torres de marfim…
Mário de Sá-Carneiro, 1915
segunda-feira, 9 de junho de 2008
10 DE JUNHO
Minha Pátria portuguesa,
Minha Terra atribulada,
Capaz de tanta grandeza,
Tantas vezes humilhada.
Esta gente que eu venero,
Este Povo sofredor,
Entre a glória e o desespero,
Quanta ilusão, quanta dor.
Minha Terra atribulada,
Capaz de tanta grandeza,
Tantas vezes humilhada.
Esta gente que eu venero,
Este Povo sofredor,
Entre a glória e o desespero,
Quanta ilusão, quanta dor.
quarta-feira, 4 de junho de 2008
DE TARDE
Naquele "pic-nic" de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
Cesário Verde (1855-1886)
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
Cesário Verde (1855-1886)
terça-feira, 3 de junho de 2008
A LOIRA
...
Como a folha que a corrente
No torvelinho levou
Como a luz do sol poente
Que o mar ao longe apagou
Como um canto que morreu...
Assim sou eu.
Como a flor que desabrocha
Bela, vivíssima e pura,
N'alguma fenda da rocha,
O seio estéril e nú...
Assim és tu.
...
Narciso Lacerda, 1880
Como a folha que a corrente
No torvelinho levou
Como a luz do sol poente
Que o mar ao longe apagou
Como um canto que morreu...
Assim sou eu.
Como a flor que desabrocha
Bela, vivíssima e pura,
N'alguma fenda da rocha,
O seio estéril e nú...
Assim és tu.
...
Narciso Lacerda, 1880
segunda-feira, 2 de junho de 2008
O OBJECTO POSSÍVEL
(...)
feita de som
e coisa nenhuma
a bruma nasce
da lenta combustão
da plaina ou pluma
no papel da árvore
ou na resina que estua -
há saliva e há talvez prece
há de certo suada pele
na mão que escreve
direita à tua
(....)
António Silva Pereira, 1980
feita de som
e coisa nenhuma
a bruma nasce
da lenta combustão
da plaina ou pluma
no papel da árvore
ou na resina que estua -
há saliva e há talvez prece
há de certo suada pele
na mão que escreve
direita à tua
(....)
António Silva Pereira, 1980
domingo, 1 de junho de 2008
VELA
Em redor da luz
A casa sai da sombra
Intensamente atenta
Levemente espantada
Em redor da luz
A casa se concentra
Numa espera densa
E quase silabada
Em redor da chama
Que menor brisa doma
E que um suspiro apaga
A casa fica muda
Enquanto a noite antiga
Imensa e exterior
Tece os seus prodígios
E ordena seus milénios
De espaço e de silêncio
De treva e esplendor
Sophia de Mello Breyner
A casa sai da sombra
Intensamente atenta
Levemente espantada
Em redor da luz
A casa se concentra
Numa espera densa
E quase silabada
Em redor da chama
Que menor brisa doma
E que um suspiro apaga
A casa fica muda
Enquanto a noite antiga
Imensa e exterior
Tece os seus prodígios
E ordena seus milénios
De espaço e de silêncio
De treva e esplendor
Sophia de Mello Breyner
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