quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

A Traição

quando do cavalo de tróia saiu outro
cavalo de tróia e deste um outro
e destoutro um quarto cavalinho de
tróia tu pensaste que da barriguinha
do último já nada podia sair
e que tudo aquilo era como uma parábola
que algum brejeiro estivesse a contar-te
pois foi quando pegaste nessa espécie
de gato de tróia que do cavalo maior
saiu armada até aos dentes de formidável amor
a guerreira a que já trazia dentro em si
os quatro cavalões do vosso apocalipse



Alexandre O'Neill (1924-1986)
Poesias Completas

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Souvenir

Como é doce e triste por vezes ouvir
Algum som antigo trazido à memória,
E ver, como em sonhos, algum rosto querido,
Trecho de paisagem, campo, rio ou vale,
Lembrança tão breve, triste e agradável,
Algo que recorde o tempo bom da infância.
    Então em dor feliz as lágrimas brotam,
Esse choro subtil que na mente aguarda,
E tudo o já sentido - campo, rio e voz -
Toma outro alcance, na memória adornado,
E lento emerge em fantasiosa luz.
    Mas, ai, eis que acordo p'los sonhos traído!
O que sinto e ouço apenas ilusão,
Porque o passado não pode regressar.
Estes campos não são os que eu conheci,
Os sons não são os que ouvi; tudo passou
E tudo o que é passado, ai, não volta mais.



Alexander Search
Poesia
edição e tradução
Luísa Freire
Assírio & Alvim
Obras de Fernando Pessoa
1999

sábado, 26 de janeiro de 2013

Como As Espigas

Finalmente (embora
saibas que não há
nem fim nem princípio):
deves dizer ainda
que há uma rosa de espuma
no teu peito e que
o seu perfume
não se esgota. E que lá
também existe
uma fonte onde bebem
as flores silvestres. Mas não
humildes, como ias
chamar-Ihes: altas
como as espigas
do vento, que no vento
se esquecem e que no vento
amadurecem.



Albano Martins
in Escrito a Vermelho

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

A Invisibilidade de Deus

dizem que em sua boca se realiza a flor

outros afirmam:

                      a sua invisibilidade é aparente

mas nunca toquei deus nesta escama de peixe

onde podemos compreender todos os oceanos

nunca tive a visão de sua bondosa mão



o certo

é que por vezes morremos magros até ao osso

sem amparo e sem deus

apenas um rosto muito belo surge etéreo

na vasta insónia que nos isolou do mundo

e sorri

dizendo que nos amou algumas vezes

mas não é o rosto de deus

nem o teu nem aquele outro

que durante anos permaneceu ausente

e o tempo revelou não ser o meu



Al-Berto
O Medo

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Apalpa um violino

Apalpa um violino 
com teus dentes. 
Corrige a corriqueira 
soma dos acordes. 
Medicamenta o mundo.Ó bruxo semanal 
com teus abutres, teu mocho 
dado à gula dos mistérios, 
quem paga esta consulta?
quem sobe, arfando, os degraus 
da febre? Teu beijo muge 
a tua boca sangra 
o teu pescoço azul 
desponta no meu peito.A esta hora exacta 
os deuses 
parem 
em lugares recônditos. 
Seus ovos lentos 
crescem 
no coração dos tontos.Refreias toda a fala 
sustenida 
e os campos taciturnos 
nem se movem.

Ó mago indolente 
entre os meus dedos.Cabrito pouco astuto 
em devaneios. Os animais famintos
Com seu crespo ondular
Percorrem-te os inventos,
E nós,
Os instrumentos.

A rede musicada
Das tuas mãos de merda.



Armando Silva Carvalho
"Os Ovos de Ouro"

domingo, 20 de janeiro de 2013

PROGRAMA

Não queremos poesia de género algum,
Queremos truques mágicos de saco,
Procuramos tapar na existência um fatal buraco.
E apesar de esforço insano não tapamos nenhum.

Mas que sabeis vós outros do secreto aspirar,

Dos soluços de divina histeria que em gargantas choram,
Quando, plenamente absorvidos pelo haxixe da alma elementar,
Beijamos o primeiro degrau, para além de cujo limiar
Eoneamente os deuses moram?


Wilhelm Klemm
A Alma e o Caos
100 poemas expressionistas
selecção e tradução de
João Barrento