segunda-feira, 15 de setembro de 2014

DEPÕE SILENCIOSAMENTE AS MÃOS EM CONCHA



Depõe silenciosamente as mãos em concha
no alto de loucuras astrais pelo vago isoladas
Mas serve
no inevitável percurso quotidiano
as duras queixas que o amador amigo apresenta
regularmente
De inquebrantável desejo o adejar das águias
áleas esguias de serpentes escoando o medo
diante dos passos que acompanham
essas mãos.
Do cão forçosamente recto. Atento. Unilinear e 
                                        imerso
em cava escuridade de pressentimentos ocos
roucos sons de malogro.
Quando do violino se partiu a corda
os altos candeeiros estremeceram
e ferozmente se abriram as janelas
para as árvores sombrias no alto céu estrelado.
Eram assim os jardins dessa ignorada noite.
Vagueamos, parados, no doce canto do silêncio
soltando pérolas pelos lagos do lado

As sombras enrolam-se tu dizes sei
e o fantasma perde-se, voz impoluta
Serenamente vivo
a presença do canto



Maria Alzira Seixo

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

DEIXAREI OS JARDINS A BRILHAR COM SEUS OLHOS


Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos
detidos: hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Mas chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias
internos.


Vou morrer assim, arfando
entre o mar fotográfico
e côncavo
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas
o sangue que se agrava.


Está cheio de candeias, o verão de onde se parte,
ígneo nessa criança
contemplada. Eu abandono estes jardins
ferozes, o génio
que soprou nos estúdios cavados. É a cólera que me leva
aos precipícios de agosto, e a mansidão
traz-me às janelas. São únicas as colinas como o ar
palpitante fechado num espelho. É a estação dos planetas.
Cada dia é um abismo atómico.


E o leite faz-se tenro durante
os eclipses. Bate em mim cada pancada do pedreiro
que talha no calcário a rosa congenital.
A carne, asfixiam-na os astros profundos nos casulos.
O verão é de azulejo.
É em nós que se encurva o nervo do arco
contra a flecha. Deus ataca-me
na candura. Fica, fria,
esta rede de jardins diante dos incêndios. E uma criança
dá a volta à noite, acesa completamente
pelas mãos.




Herberto Helder

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

UM MUNDO

É um sonho ou talvez só uma pausa

na penumbra. Esta massa obscura

que ela revolve nas águas são estrelas.

Entre aromas e cores, um barco de calcário

prossegue uma viagem imóvel num jardim.

Vejo a brancura entre os astros e os ramos.

Dir-se-ia que o ser respira e se deslumbra

e que tudo ascende sob um sopro silencioso.

Nenhum sentido mas os signos amam-se

e o brilho e o rumor formam um mundo.



António Ramos Rosa

sábado, 30 de agosto de 2014

ÁRVORES DO ALENTEJO



Horas mortas... Curvada aos pés do Monte

A planície é um brasido... e, torturadas,

As árvores sangrentas, revoltadas,

Gritam a Deus a benção duma fonte!



E quando, manhã alta, o sol posponte

A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,

Esfíngicas, recortam desgrenhadas

Os trágicos perfis no horizonte!



Árvores! Corações, almas que choram,

Almas iguais à minha, almas que imploram

Em vão remédio para tanta mágoa!



Árvores! Não choreis! Olhai e vede:

- Também ando a gritar, morta de sede,

Pedindo a Deus a minha gota de água!


Florbela Espanca

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

HORA



Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta --- por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.
 
Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.
 
E dormem mil gestos nos meus dedos.
 
Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.
 
Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.
 
E de novo caminho para o mar.
 


“SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN” 

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

SERIA O AMOR PORTUGUÊS



Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
— tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
«Que me importa que batam à porta...»
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?

Fernando Assis Pacheco