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quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Surdo, Subterrâneo Rio


Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.

Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?

                            Eugénio de Andrade

sábado, 18 de junho de 2011

Poema à Mãe

 No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
          Era uma vez uma princesa
          no meio de um laranjal...


Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade (1923-2005), in  "Os Amantes Sem Dinheiro"

quarta-feira, 15 de junho de 2011

O Silêncio

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.

Eugénio de Andrade (1923-2005), in  "Obscuro Domínio"

domingo, 12 de junho de 2011

Adeus

Adeus Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade (1923-2005), in “Poesia e Prosa”

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A boca

1.
 A boca,

onde o fogo
de um verão
muito antigo

cintila,

a boca espera

(que pode uma boca
esperar
senão outra boca?)

espera o ardor
do vento
para ser ave,

e cantar.


2. 
Levar-te à boca,
beber a água
mais funda do teu ser -

se a luz é tanta,
como se pode morrer?


Eugénio de Andrade

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Procura a maravilha

 Procura a maravilha.

Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.

No brilho redondo
e jovem dos joelhos.

Na noite inclinada
de melancolia.

Procura.

Procura a maravilha.


Eugénio de Andrade

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Sê tu a palavra

 1.
Sê tu a palavra,
branca rosa brava.

2.
Só o desejo é matinal.

3.
Poupar o coração
é permitir à morte
coroar-se de alegria.

4.
Morre
de ter ousado
na água amar o fogo.

5.
Beber-te a sede e partir
- eu sou de tão longe.

6.
Da chama à espada
o caminho é solitário.

7.
Que me quereis,
se me não dais
o que é tão meu?


 Eugénio de Andrade

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Entre os teus lábios

 Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.


Eugénio de Andrade

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

É urgente o amor

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.


Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.


Eugénio de Andrade

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Passamos pelas coisas sem as ver



Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.


Eugénio de Andrade 

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Semana "EUGÉNIO DE ANDRADE" (VII)

Eugénio de Andrade, pseudónimo escolhido pelo poeta que, nasceu em Póvoa da Atalaia, concelho de Fundão, em 19 de Janeiro de 1923. Viveu na cidade do Porto a maior parte da sua vida, desempenhado as funções de funcionário dos Serviços Médico-Sociais. A cidade concedeu-lhe o título de cidadão honorário e nela foi criada uma Fundação com o seu nome. Aí morreu em 13 de Junho de 2005. É, sem sombra de dúvida, um dos maiores poetas contemporâneos da língua portuguesa. Numa linguagem de grande sobriedade, mas extraordinariamente elaborada, atinge uma grande plenitude poética exprimindo sensualidade, dor, afectos e factos do viver quotidiano, com um depurado sentido do ritmo, e numa inteligente utilização de imagens e símbolos que traduzem uma emoção lúcida perante a realidade.


 
SURDO, SUBTERRÂNEO RIO
 
Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o próprio lodo.
 
Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
--- surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?
 
                            Eugénio de Andrade

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Semana "EUGÉNIO DE ANDRADE" (VI )

Eugénio de Andrade, pseudónimo escolhido pelo poeta que, nasceu em Póvoa da Atalaia, concelho de Fundão, em 19 de Janeiro de 1923. Viveu na cidade do Porto a maior parte da sua vida, desempenhado as funções de funcionário dos Serviços Médico-Sociais. A cidade concedeu-lhe o título de cidadão honorário e nela foi criada uma Fundação com o seu nome. Aí morreu em 13 de Junho de 2005. É, sem sombra de dúvida, um dos maiores poetas contemporâneos da língua portuguesa. Numa linguagem de grande sobriedade, mas extraordinariamente elaborada, atinge uma grande plenitude poética exprimindo sensualidade, dor, afectos e factos do viver quotidiano, com um depurado sentido do ritmo, e numa inteligente utilização de imagens e símbolos que traduzem uma emoção lúcida perante a realidade.



 
AS PALAVRAS
 
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
 
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
 
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
 
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
 
                   Eugénio de Andrade

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Semana "EUGÉNIO DE ANDRADE" ( V )


Eugénio de Andrade, pseudónimo escolhido pelo poeta que, nasceu em Póvoa da Atalaia, concelho de Fundão, em 19 de Janeiro de 1923. Viveu na cidade do Porto a maior parte da sua vida, desempenhado as funções de funcionário dos Serviços Médico-Sociais. A cidade concedeu-lhe o título de cidadão honorário e nela foi criada uma Fundação com o seu nome. Aí morreu em 13 de Junho de 2005. É, sem sombra de dúvida, um dos maiores poetas contemporâneos da língua portuguesa. Numa linguagem de grande sobriedade, mas extraordinariamente elaborada, atinge uma grande plenitude poética exprimindo sensualidade, dor, afectos e factos do viver quotidiano, com um depurado sentido do ritmo, e numa inteligente utilização de imagens e símbolos que traduzem uma emoção lúcida perante a realidade.


 
OS AMANTES SEM DINHEIRO
 
Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com  a água
e um anjo de pedra por irmão.
 
Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.
 
Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.
 
              Eugénio de Andrade





quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Semana "EUGÉNIO DE ANDRADE" ( IV)


Eugénio de Andrade, pseudónimo escolhido pelo poeta que, nasceu em Póvoa da Atalaia, concelho de Fundão, em 19 de Janeiro de 1923. Viveu na cidade do Porto a maior parte da sua vida, desempenhado as funções de funcionário dos Serviços Médico-Sociais. A cidade concedeu-lhe o título de cidadão honorário e nela foi criada uma Fundação com o seu nome. Aí morreu em 13 de Junho de 2005. É, sem sombra de dúvida, um dos maiores poetas contemporâneos da língua portuguesa. Numa linguagem de grande sobriedade, mas extraordinariamente elaborada, atinge uma grande plenitude poética exprimindo sensualidade, dor, afectos e factos do viver quotidiano, com um depurado sentido do ritmo, e numa inteligente utilização de imagens e símbolos que traduzem uma emoção lúcida perante a realidade.
 
URGENTEMENTE
 
É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.
 
É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
 
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
 
Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor, 
É urgente permanecer.
 
                     Eugénio de Andrade


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Semana "EUGÉNIO DE ANDRADE" (III)

Eugénio de Andrade, pseudónimo escolhido pelo poeta que, nasceu em Póvoa da Atalaia, concelho de Fundão, em 19 de Janeiro de 1923. Viveu na cidade do Porto a maior parte da sua vida, desempenhado as funções de funcionário dos Serviços Médico-Sociais. A cidade concedeu-lhe o título de cidadão honorário e nela foi criada uma Fundação com o seu nome. Aí morreu em 13 de Junho de 2005. É, sem sombra de dúvida, um dos maiores poetas contemporâneos da língua portuguesa. Numa linguagem de grande sobriedade, mas extraordinariamente elaborada, atinge uma grande plenitude poética exprimindo sensualidade, dor, afectos e factos do viver quotidiano, com um depurado sentido do ritmo, e numa inteligente utilização de imagens e símbolos que traduzem uma emoção lúcida perante a realidade.

RESPIRO O TEU CORPO
 
Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.
 
            Eugénio de Andrade
 
 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Semana "EUGÉNIO DE ANDRADE" ( II )

Eugénio de Andrade, pseudónimo escolhido pelo poeta que, nasceu em Póvoa da Atalaia, concelho de Fundão, em 19 de Janeiro de 1923. Viveu na cidade do Porto a maior parte da sua vida, desempenhado as funções de funcionário dos Serviços Médico-Sociais. A cidade concedeu-lhe o título de cidadão honorário e nela foi criada uma Fundação com o seu nome. Aí morreu em 13 de Junho de 2005. É, sem sombra de dúvida, um dos maiores poetas contemporâneos da língua portuguesa. Numa linguagem de grande sobriedade, mas extraordinariamente elaborada, atinge uma grande plenitude poética exprimindo sensualidade, dor, afectos e factos do viver quotidiano, com um depurado sentido do ritmo, e numa inteligente utilização de imagens e símbolos que traduzem uma emoção lúcida perante a realidade.


POEMA XVIII
 
Impetuoso, o teu corpo é como um rio
onde o meu se perde.
Se escuto, só oiço o teu rumor.
De mim, nem o sinal mais breve.
 
Imagem dos gestos que tracei,
irrompe puro e completo.
Por isso, rio foi o nome que lhe dei.
E nele o céu fica mais perto.
 
                       Eugénio de Andrade
 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Semana "EUGÉNIO DE ANDRADE" ( I )

Eugénio de Andrade, pseudónimo escolhido pelo poeta que, nasceu em Póvoa da Atalaia, concelho de Fundão, em 19 de Janeiro de 1923. Viveu na cidade do Porto a maior parte da sua vida, desempenhado as funções de funcionário dos Serviços Médico-Sociais. A cidade concedeu-lhe o título de cidadão honorário e nela foi criada uma Fundação com o seu nome. Aí morreu em 13 de Junho de 2005. É, sem sombra de dúvida, um dos maiores poetas contemporâneos da língua portuguesa. Numa linguagem de grande sobriedade, mas extraordinariamente elaborada, atinge uma grande plenitude poética exprimindo sensualidade, dor, afectos e factos do viver quotidiano, com um depurado sentido do ritmo, e numa inteligente utilização de imagens e símbolos que traduzem uma emoção lúcida perante a realidade. 
 

AS AMORAS
 
O meu país sabe as amoras bravas
no verão.      
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

 
                   Eugénio de Andrade ("O Outro Nome da Terra")