Num cerro do Marão
Estranha luz meus olhos deslumbrou;
E em corpo de lembrança divaguei
Além dos horizontes,
E toda a pátria terra percorri,
E o mar e o céu azul,
Onde os anjos da velha Lusitânia
Voam como através da nossa fantasia.
Vejo campos Elísios de verdura,
Serras azuis de infinda suavidade;
E a serra do Gerês,
Com os seus altos baluartes esculpidos
A pancadas de chuva e de granizo
E a golpes de relâmpagos.
Vejo rios dormentes,
Misteriosos vales, que se alargam
Em cultivadas várzeas;
Ovelhinhas pastando em místicos outeiros
E pastores tangendo a flauta do deus Pã;
Meda de palha nos eirados,
Velhas choupanas que fumegam;
Sobre o quinteiro, à porta, uma ramada verde,
E, mais em baixo, num recanto escuro,
Uma bica de pedra a deitar água fresca
Num cântaro de barro.
E em lugares sinistros,
Que o medo despovoa,
Arruinados solares, onde habitam
Fantasmas e corujas, quando a Lua
Derrama, na solidão extática das noites,
Não sei que frio alvor e que tristeza de alma.
Praias de espuma e névoa, incêndios de oiro, à tarde,
Entre pinhais, fugindo, desgrenhados,
Na direcção do vento...
E cidades, vivendo protegidas
Por santos tutelares:
Viana e Santa Luzia e Braga e o Bom Jesus,
E Guimarães aos pés dum Pio IX em pedra,
Católica e Romana.
E o Porto de Herculano,
Como Lisboa é de Garrett.
Lisboa em gesso branco, o Porto em pedra escura,
Sobre os abruptos alcantis do Douro;
Esse rio que vem de longe, solitário,
Cobrir-se de asas brancas de navios
E de negros canudos de vapores.
Encostados aos cais, depõem a férrea carga.
Outros, vão demandando a barra e o farolim,
Que dá uma luz - tão triste! - em noites invernosas.
Distante, no poente, esfuma-se uma nódoa
Em verdes tons fluídos que palpitam
Numa névoa indecisa, vaga imagem
Da tristeza do mar pintada em nossos olhos.
Teixeira de Pascoaes
sexta-feira, 30 de agosto de 2013
domingo, 25 de agosto de 2013
LEMBRAMOS AOS AMIGOS.
Olho os amigos como quem se despede, uma vez por dia. Olho-os para que não os esqueça, para que se guardem as suas imagens dentro das pálpebras. Hoje chove porque me esqueço aos poucos de onde vieram. Termino o dia pensando neles, nos amigos. E as suas palavras realçam-me as marcas que tenho pelo corpo, erguem-se pelas mãos as suas vozes quando todos os outros se calam falam como amigos. O corpo é uma febre conjunta - como que se estendesse pela memória o desenho de um país que se guarda na algibeira ao partir - e continuo a partir daqui, onde os barcos viajam, onde as gaivotas chilream enquanto o sal se estende pelas minhas narinas. O vento alarga-me a roupa que se moldou ao sabor dos dias. Penso no hoje e ele raia-se pelo rio, surgem palavras de apreço pelas luzes pelas ruas e os amigos soltam-se de nós Como uma prisão de espuma. São um momento em que a fome se torna grande demais para os olhos, onde tudo o que jaz à nossa volta é efémero perduram como pequenas árvores em torno de nós. Devolvo-lhes um tempo de cada vez. Restítuo ao que foram o peso das letras e dos campos - respirámos, em espaços, o mesmo ar. É quando se nos cresce um soluço pela garganta que vemos - a chuva nada mais é que um som - aí lembramos aos amigos o que somos e porque os olho com o volume da despedida nas mãos. Sérgio Xarepe
terça-feira, 20 de agosto de 2013
QUANTO DE TI, AMOR...
Quanto de ti, amor, me possuiu no abraço em que de penetrar-te me senti perdido no ter-te para sempre - Quanto de ter-te me possui em tudo o que eu deseje ou veja não pensando em ti no abraço a que me entrego - Quanto de entrega é como um rosto aberto, sem olhos e sem boca, só expressão dorida de quem é como a morte - Quanto de morte recebi de ti, na pura perda de possuir-te em vão de amor que nos traiu - Quanta traição existe em possuir-se a gente sem conhecer que o corpo não conhece mais que o sentir-se noutro - Quanto sentir-te e me sentires não foi senão o encontro eterno que nenhuma imagem jamais separará - Quanto de separados viveremos noutros esse momento que nos mata para quem não nos seja e só - Quanto de solidão é este estar-se em tudo como na auséncia indestrutível que nos faz ser um no outro - Quanto de ser-se ou se não ser o outro é para sempre a única certeza que nos confina em vida - Quanto de vida consumimos pura no horror e na miséria de, possuindo, sermos a terra que outros pisam - Oh meu amor, de ti, por ti, e para ti, recebo gratamente como se recebe não a morte ou a vida, mas a descoberta de nada haver onde um de nós não esteja. Jorge de Sena
quinta-feira, 15 de agosto de 2013
DESVIOS
Surdem da infância medos totais Nem mesmo o tempo ou o riso os sara. Homens que tinham jeito de pais entreabriram com arte rara O sobretudo, mostrando o sexo; E os ciganos vinham aos quintais. Mas foi no quarto grande o reflexo, Quando era noite, em dois frontais, Infindos espelhos o que me trouxe Pavores maiores, os do diabo: Fugas pela casa, gritos, não fosse Ir-me às orelhas ou ver-me o rabo Luiza Neto Jorge
sábado, 10 de agosto de 2013
DEIXAREI OS JARDINS A BRILHAR COM SEUS OLHOS
Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos
detidos: hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Mas chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias
internos.
Vou morrer assim, arfando
entre o mar fotográfico
e côncavo
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas
o sangue que se agrava.
Está cheio de candeias, o verão de onde se parte,
ígneo nessa criança
contemplada. Eu abandono estes jardins
ferozes, o génio
que soprou nos estúdios cavados. É a cólera que me leva
aos precipícios de agosto, e a mansidão
traz-me às janelas. São únicas as colinas como o ar
palpitante fechado num espelho. É a estação dos planetas.
Cada dia é um abismo atómico.
E o leite faz-se tenro durante
os eclipses. Bate em mim cada pancada do pedreiro
que talha no calcário a rosa congenital.
A carne, asfixiam-na os astros profundos nos casulos.
O verão é de azulejo.
É em nós que se encurva o nervo do arco
contra a flecha. Deus ataca-me
na candura. Fica, fria,
esta rede de jardins diante dos incêndios. E uma criança
dá a volta à noite, acesa completamente
pelas mãos.
Herberto Helder
detidos: hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Mas chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias
internos.
Vou morrer assim, arfando
entre o mar fotográfico
e côncavo
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas
o sangue que se agrava.
Está cheio de candeias, o verão de onde se parte,
ígneo nessa criança
contemplada. Eu abandono estes jardins
ferozes, o génio
que soprou nos estúdios cavados. É a cólera que me leva
aos precipícios de agosto, e a mansidão
traz-me às janelas. São únicas as colinas como o ar
palpitante fechado num espelho. É a estação dos planetas.
Cada dia é um abismo atómico.
E o leite faz-se tenro durante
os eclipses. Bate em mim cada pancada do pedreiro
que talha no calcário a rosa congenital.
A carne, asfixiam-na os astros profundos nos casulos.
O verão é de azulejo.
É em nós que se encurva o nervo do arco
contra a flecha. Deus ataca-me
na candura. Fica, fria,
esta rede de jardins diante dos incêndios. E uma criança
dá a volta à noite, acesa completamente
pelas mãos.
Herberto Helder
segunda-feira, 5 de agosto de 2013
OS DOMINGOS DE LISBOA
Os domingos de Lisboa são domingos Terríveis de passar - e eu que o diga! De manhã vais à missa aS. Domingos E à tarde apanhamos alguns pingos De chuva ou coçamos a barriga. As palavras cruzadas, o cinema ou a apa, E o dia fecha-se com um último arroto. Mais uma hora ou duas e a noite está Passada, e agarrada a mim como uma lapa, Tu levas-me p'ra a cama, onde chego já morto. E então começam as tuas exigências, as piores! Quer's por força que eu siga os teus caprichos! Que diabo! Nem de nós mesmos seremos já senhores? Estaremos como o ouro nas casas de penhores Ou no Jardim Zoológico, irracionais, os bichos? ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Mas serás tu a minha «querida esposa», Aquela que se me ofereceu menina? Oh! Guarda os teus beijos de aranha venenosa! Fecha-me esse olho branco que me goza E deixa-me sonhar como um prédio em ruína!... Alexandre O´Neill
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