segunda-feira, 30 de setembro de 2013

POETAR FILOSOFANDO – FILOSOFAR POETANDO (VI)



Frases

Não te alongues a contar as tuas façanhas, nem os perigos que terás passado; não podes querer que os outros tenham tanto prazer em escutar-te como tu em contá-los.

São as dificuldades que revelam o carácter dos homens.

Todo o grande poder é perigoso para quem ainda não é bastante sábio para o usar.

Afasta de ti desejos e receios e não haverá quem te consiga tiranizar.

Qual é a primeira coisa que deve fazer quem começa a filosofar?
Rejeitar a presunção de saber. De fato, não é possível começar a aprender aquilo que já se julga saber.


Sucesso é encontrar aquilo que se tenciona ser e depois fazer o que é necessário para nos tornarmos o que pretendemos ser.



Um adulador parece-se com um amigo, como um lobo se parece com um cão.
Cuida, pois, em não admitir inadvertidamente, na tua casa, lobos famintos em vez de cães de guarda.

A felicidade não consiste em adquirir nem em gozar, mas sim em nada desejar, consiste em ser livre de todos os desejos.

O homem sábio é aquele que não se entristece com as coisas que não tem, mas rejubila com as que tem.

Só a educação liberta. Quanto mais sábio, mais o homem é livre.



Epicteto, in 'Manual'

domingo, 29 de setembro de 2013

Um mundo


É um sonho ou talvez só uma pausa

na penumbra. Esta massa obscura

que ela revolve nas águas são estrelas.

Entre aromas e cores, um barco de calcário

prossegue uma viagem imóvel num jardim.

Vejo a brancura entre os astros e os ramos.

Dir-se-ia que o ser respira e se deslumbra

e que tudo ascende sob um sopro silencioso.

Nenhum sentido mas os signos amam-se

e o brilho e o rumor formam um mundo.


António Ramos Rosa, ACORDES

sábado, 28 de setembro de 2013

O horizonte das palavras



Sem direcção, sem caminho

escrevo esta página que não tem alma dentro.

Se conseguir chegar à substância de um muro

acenderei a lâmpada de pedra na montanha.

E sem apoio penetro nos interstícios fugidios

ou enuncio as simples reiterações da terra,

as palavras que se tornam calhaus na boca ou nos meus passos.

Tentarei construir a consistência num adágio

de sílabas silvestres, de ribeiros vibrantes.

E na substância entra a mão, o balbucio branco

de uma língua espessa, a madeira, as abelhas,

um organismo verde aberto sobre o mar,

as teclas do verão, as indústrias da água.

Eu sou agora o que a linguagem mostra

nas suas verdes estratégias, nas suas pontes

de música visual: o equilíbrio preenche os buracos

com arcos, colinas e com árvores.

Um alvor nasceu nas palavras e nos montes.

O impronunciável é o horizonte do que é dito.


António Ramos Rosa,  ACORDES

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Nascimento último


Como se não tivesse substância e de membros apagados.
Desejaria enrolar-me numa folha e dormir na sombra.
E germinar no sono, germinar na árvore.
Tudo acabaria na noite, lentamente, sob uma chuva densa.
Tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada.
No encontro e no abandono, na última nudez,
respiraria ao ritmo do vento, na relação mais viva.
Seria de novo o gérmen que fui, o rosto indivisível.
E ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser, os seus obscuros terraços.
Entre rumores e rios a morte perder-se-ia.



António Ramos Rosa, No Calcanhar do Vento - 1987

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Quem ama a liberdade conhece que é idêntica


Quem ama a liberdade conhece que é idêntica
a verdade e a não-verdade o ser e o vazio
e por isso na sua celebração a metáfora expande-se
na liberdade de ser a ténue sabedoria
desse momento e só desse momento em que o arco cresce
Há então que procurar a chuva dessa nuvem
ou desdizê-la não para o nosso olhar
mas para um outro rosto de areia que cresce no vazio
e poderá ser de pedra ou de ouro ou só de uma penugem
O poema é o encontro destas duas faces
de nenhuma substância quando no vazio do céu
os anjos se diluem com as mãos despojadas



António Ramos Rosa
As espirais do silêncio