Sois: os sons roucos, a espera vã, uma perdida imagem. O coração suspende o seu hálito e os lábios tremem sinto-vos, vindes ao rés da terra, como ventos baixos, poisais no peitoril. Sois muito antigos e jovens, da infância em que por vós chorava encostada a um rosto. Que saudade eu tenho, ó escuridão no poço, ó rastejar de víboras nos caniços, ó vespa que, como eu, degustaste o figo úbere. Depois, mundo maior foi a presença e a ausência, a alegria e as dores de outros que não eu. E um dia, no alto da catedral de Gaudí, chorei de horror da Queda, como os caídos anjos. Fiama Hassa Pais Brandão
terça-feira, 30 de julho de 2013
EPÍSTOLA PARA OS MEUS MEDOS
quinta-feira, 25 de julho de 2013
O AMOR
é uma coisa que desliza
por cima das lagoas
que corre pelos campos sem
sentido
que empurra o vento
e apruma o sol no solstício
que derruba a bruma e fecha
o horizonte
que nos faz ver de noite e
de dia cegos
tacteando o ar sem
provimento
que dá o movimento aos
astros
e às sombras infinitas
que abre o mar por onde os
escravos passam
e ficam livres sem
saber
é a cascata que nos dilui
e lança na corrente sem
perfídia
até ao oceano dos sentidos
é o iceberg que se funde
e derrota os titanics
que passam solitários pelas
albas
é o assombro da manhã
o cantar dos ralos nas
searas
o despertar das aves e
rebanhos
o charco onde crescem amarelo e roxo
as flores da primavera
é só eu e tu
como nas novelas
Henrique Ruivo
branco azul
ocre
Difel
sábado, 20 de julho de 2013
VESTÍGIOS
noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras
hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se
onde se pode - num vocabulário reduzido e
obcessivo - até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir
apesar de tudo
continuamos e repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva - vamos pela febre
dos cedros acima - até que tocamos o místico
arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial
Al-Berto
O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS
De amor nada mais resta que um Outubro e quanto mais amada mais desisto: quanto mais tu me despes mais me cubro e quanto mais me escondo mais me avisto. E sei que mais te enleio e te deslumbro porque se mais me ofusco mais existo. Por dentro me ilumino, sol oculto, por fora te ajoelho, corpo místico. Não me acordes. Estou morta na quermesse dos teus beijos. Etérea, a minha espécie nem teus zelos amantes a demovem. Mas quanto mais em nuvem me desfaço mais de terra e de fogo é o abraço com que na carne queres reter-me jovem. Natália Correia
segunda-feira, 15 de julho de 2013
TU ESTÁS AQUI
Estás aqui comigo à sombra do sol escrevo e oiço certos ruídos domésticos e a luz chega-me humildemente pela janela e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama que uso para ser também isto este bicho de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem o que sei o que faço ou então sou eu que julgo que o sabem e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou outra coisa esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço bem entendido o que faço com este braço Estás aqui comigo e à volta são as paredes e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro nome embora no mesmo nome este nome de terra de dor de paredes este nome doméstico Afinal fui isto nada mais do que isto as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome que não merda e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das outras coisas Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa uma coisa para além disto que não isto Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos tu és em cada gesto todos os teus gestos e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como a palavra paz Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas perdoa pagares tão alto preço por estar aqui perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer sou isto é certo mas sei que tu estás aqui Ruy Belo
quarta-feira, 10 de julho de 2013
PÁTRIA
Por um país de pedra e vento duro Por um país de luz perfeita e clara Pelo negro da terra e pelo branco do muro Pelos rostos de silêncio e de paciência Que a miséria longamente desenhou Rente aos ossos com toda a exactidão Do longo relatório irrecusável E pelos rostos iguais ao sol e ao vento E pela limpidez das tão amadas Palavras sempre ditas com paixão Pela cor e pelo peso das palavras Pelo concreto silêncio limpo das palavras Donde se erguem as coisas nomeadas Pela nudez das palavras deslumbradas - Pedra rio vento casa Pranto dia canto alento Espaço raiz e água Ó minha pátria e meu centro Me dói a lua me soluça o mar E o exílio se inscreve em pleno tempo. Sophia de Mello Breyner Andresen
sexta-feira, 5 de julho de 2013
QUEM ÉS TU
Quem és tu que assim vens pela noite adiante, Pisando o luar branco dos caminhos, Sob o rumor das folhas inspiradas? A perfeição nasce do eco dos teus passos, E a tua presença acorda a plenitude A que as coisas tinham sido destinadas. A história da noite é o gesto dos teus braços, O ardor do vento a tua juventude, E o teu andar é a beleza das estradas. Sophia de Mello Breyner Andresen Obra Poética I
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