«Mas que beleza há na poesia?» Escuta, quando vês um grande amigo rodeado de mulheres, quando estás fascinado com a orquestra, e sob o reflector resplandecem as cores de uma deusa que desce seminua à plateia, onde tu estremeces, escondido em toda aquela multidão!, quando em noite escura e serena amigos dançam sem mulheres numa praça ao som de um acordeão e tu ficas à parte; pois bem, isso não é belo para ti? Também é belo para um velho que se chama crítico e acha beleza em muitas coisas e que até se aventurou a descobrir no mundo e talvez fora do mundo, coisas cada vez mais belas, mas que diz, com amor: «que belo é este poema!» E tu, tu olhas-me sem sequer me dares um beijo? Sandro Penna No Brando Rumor da Vida Assírio & Alvim 2003
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
A lição de estética
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
Da margem esquerda da vida
Da margem esquerda da vida Parte uma ponte que vai Só até meio, perdida Num balo vago, que atrai. É pouco tudo o que eu vejo, Mas basta, por ser metade, P'ra que eu me afogue em desejo Aquém do mar da vontade. Da outra margem, direita, A ponte parte também. Quem sabe se alguém ma espreita? Não a atravessa ninguém. Reinaldo Ferreira Poemas Estudo de José Régio Prefácio de Guilherme de Melo o chão da palavra/poesia
sábado, 23 de fevereiro de 2013
A recusa das imagens evidentes
I Rosa que só tens nexo Fora da tua imagem: Aqui és só reflexo Do universo unido No instante florido Que ofereces aos que te olham, Sem te ver, de passagem. II Girassol que na retina Da planície se dissolve. És a cor mais repentina Da aragem que te envolve. Girassol que só te viras Ao que não te fica perto E só giras porque giras Sobre o teu eixo secreto. . Girassol que sem volume Volume que sem contorno No despegar-se resume Só a pressa do retorno. III É um outono que não é outono. Tampouco a estação por que se espera Na dor de nos deixarern ao abandono As ninfas que são flores na primavera. . No entanto nas coisas o segredo De uma só alma põe a sabedoria Dando à terra repouso no arvoredo De que o cedro é a sagrada biografia. IV Há noites que são feitas dos rneus braços E um silêncio comum às violetas. E há sete luas que são sete traços De sete noites que nunca forarn feitas. Há noites que levarnos à cintura Como um cinto de grandes borboletas. E um risco a sangue na nossa carne escura Duma espada à bainha dum cometa. Há noites que nos deixam para trás Enrolados no nosso desencanto E cisnes brancos que só são iguais A mais longínqua onda do seu canto. Há noites que nos levam para onde O fantasma de nos fica mais perto; E é sempre a nossa voz que nos responde E só o nosso nome estava certo. Há noites que são lírios e são feras E a nossa exactidão de rosa vil Reconcilia no frio das esferas Os astros que se olham de perfil. V Há um cipreste que se dissimula No dia que nos leva pela mão. E entre brasas de sol que ardem na rua Uma pomba que faz de coração. . Voa: uma linha recta para a lua Em sonhos que nos levam de balão. Perversidade de uma paz futura Onde só chegaremos de caixão? E nada nos recorda esse futuro Escondido atrás das nuvens que trouxeram Ao nosso rosto os olhos prematuros Das órbitas reais que nos esperam. Natália Correia Poesia Completa Publicações Dom Quixote 1999
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013
Coração Polar
I
Não sei de que cor são os navios
quando naufragam no meio dos teus braços
sei que há um corpo nunca encontrado algures no mar
e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial
a tua promessa nos mastros de todos os veleiros
a ilha perfumada das tuas pernas
o teu ventre de conchas e corais
a gruta onde me esperas
com teus lábios de espuma e de salsugem
os teus naufrágios
e a grande equação do vento e da viagem
onde o acaso floresce com seus espelhos
seus indícios de rosa e descoberta.
Não sei de que cor é essa linha
onde se cruza a lua e a mastreação
mas sei que em cada rua há uma esquina
uma abertura entre a rotina e a maravilha .
há uma hora de fogo para o azul
a hora em que te encontro e não te encontro
há um ângulo ao contrário
uma geometria mágica onde tudo pode ser possível
há um mar imaginário aberto em cada página
não me venham dizer que nunca mais
as rotas nascem do desejo
e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos
quero o teu nome escrito nas marés
nesta cidade onde no sítio mais absurdo
num sentido proibido ou num semáforo
todos os poentes me dizem quem tu és.
Manuel Alegre (n. 1936)
in Poemas de Amor
Organização de Inês Pedrosa
Não sei de que cor são os navios
quando naufragam no meio dos teus braços
sei que há um corpo nunca encontrado algures no mar
e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial
a tua promessa nos mastros de todos os veleiros
a ilha perfumada das tuas pernas
o teu ventre de conchas e corais
a gruta onde me esperas
com teus lábios de espuma e de salsugem
os teus naufrágios
e a grande equação do vento e da viagem
onde o acaso floresce com seus espelhos
seus indícios de rosa e descoberta.
Não sei de que cor é essa linha
onde se cruza a lua e a mastreação
mas sei que em cada rua há uma esquina
uma abertura entre a rotina e a maravilha .
há uma hora de fogo para o azul
a hora em que te encontro e não te encontro
há um ângulo ao contrário
uma geometria mágica onde tudo pode ser possível
há um mar imaginário aberto em cada página
não me venham dizer que nunca mais
as rotas nascem do desejo
e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos
quero o teu nome escrito nas marés
nesta cidade onde no sítio mais absurdo
num sentido proibido ou num semáforo
todos os poentes me dizem quem tu és.
Manuel Alegre (n. 1936)
in Poemas de Amor
Organização de Inês Pedrosa
terça-feira, 19 de fevereiro de 2013
À minha mãe (reivindicação de uma formosura)
Escuta nas noites como se rasga a seda e ao chão cai sem ruido a chávena de chá como uma magia tu que só palavras doces tens para os mortos e um ramo de flores levas na mão para esperar a Morte que cai do seu corcel, ferida por um cavaleiro que a agarra com os seus lábios brilhantes e pelas noites chora pensando que o amavas, e diz sai ao jardim e contempla como caem as estrelas e falemos em sussurro para que ninguém nos escute vem, escuta-me falemos dos nossos objectos tenho uma rosa tatuada na face e um bastão com punho em forma de pato e dizem que chove por nós e que a neve é nossa e agora que o poema morre digo-te como uma criança, vem construí um diadema (sai ao jardim e verás como a noite nos envolve) Leopoldo María Panero Poemas do manicómio de Mondragón Alma Azul
domingo, 17 de fevereiro de 2013
Ainda ontem pensava que não era
Ainda ontem pensava que não era mais do que um fragmento trémulo sem ritmo na esfera da vida. Hoje sei que sou eu a esfera, e a vida inteira em fragmentos rítmicos move-se em mim. Eles dizem-me no seu despertar: " Tu e o mundo em que vives não passais de um grão de areia sobre a margem infinita de um mar infinito." E no meu sonho eu respondo-lhes: "Eu sou o mar infinito, e todos os mundos não passam de grãos de areia sobre a minha margem." Só uma vez fiquei mudo. Foi quando um homem me perguntou: "Quem és tu?"
Kahlil Gibran Areia e Espuma Coisas de Ler
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013
Dava a última camisa por um poema
Dava a última camisa por um poema.
Domingo ao fim da tarde só restam cinzas.
Todos. Tudo inteiramente consumido. Tudo,o quê?
Segunda, sobrava alguma palavra intacta na lareira?
Terça
tão comprida como um ano
quarta, outra vez a esperança
Não, sem poema não se pode viver!
Quinta a memória entra em pânico
A pouca claridade que restava anoiteceu
também na sexta as vagonetas com o meu minério
perdem-se no túnel.
Sábado:
trabalho em vão!
Domingo tudo recomeça e voltava a dar
a última camisa por um poema
Jan Kostra
Eslováquia
TRAD.: ERNESTO SAMPAIO
Domingo ao fim da tarde só restam cinzas.
Todos. Tudo inteiramente consumido. Tudo,o quê?
Segunda, sobrava alguma palavra intacta na lareira?
Terça
tão comprida como um ano
quarta, outra vez a esperança
Não, sem poema não se pode viver!
Quinta a memória entra em pânico
A pouca claridade que restava anoiteceu
também na sexta as vagonetas com o meu minério
perdem-se no túnel.
Sábado:
trabalho em vão!
Domingo tudo recomeça e voltava a dar
a última camisa por um poema
Jan Kostra
Eslováquia
TRAD.: ERNESTO SAMPAIO
quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013
A mágoa é um vício
A mágoa é um vício, a ele volto pelas madeiras desta casa, as memórias são mais que os sinais pendurados ao longo das paredes, não descrevo o que vejo. O que sinto quase está no silêncio, deixa de ser tempo o tempo da noite, nos papéis há desenhos que o matam, pontos ganhos, contas de somar, fáceis artimanhas evitando as palavras. Nada difere de como ponho a mão na testa, de como se afasta o sol para trás dos castanheiros. Tento dizer que sou como vós, leves amantes de suaves lazeres, contradigo, desminto, nada acontece. Para o dia de hoje um pequeno esboço de tristeza, derrota de cumprir, tarefa de vencer, antes da noite os ombros, as rugas, terão significado preciso. Só o recomeço será tempo de sorrisos. (Gestos de miradoiro) Helder Moura Pereira (1949) Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea Um Panorama Organização de Alberto da Costa e Silva Alexei Bueno Lacerda Editores 1999
segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013
A roupa envolve-nos
A roupa envolve-nos a paragem do mar cresce contigo a língua e o sentido tudo anda tão ocupado tão cansado e destruído que a roupa em torno morre como um foco de ruído O movimento cerca esta mudez o mar desidratado é o abismo onde revives Viste os vales instáveis do mar mas para que é perguntar senão que se fez de ti O fogo sob as vozes que não ouves A língua vive ainda? Inscrevo na memória tumefacta mais uma imagem Esses corpos nascem O que posso dizer para cobri-los? Ouves? Está comigo a mortalidade da tua vida Como falar contigo? Mas o som produzido era tanto que as cordas se formavam com a sua saída retomavam a forma destruída enquanto tudo o que te dizia dividia um som tempestuoso Na ocasião da queda desses algum olha as áreas correspondentes no mar volta transforma-se é um sinal de contradição e sob a chuva contínua de relâmpagos revive Porém o som inibe-te prossegues sem segurança o canto a turva cítara vence-te não o canto repetido Essas cordas do peito já distensas submetem-se ao silêncio poderias escolhê-las porém sempre repetes os nomes desses corpos a mudez intimida-te assim a poesia nasce com o rumor dos próprios corpos com o bater dos nomes entre os ombros tão dóceis mar de músculos mudos o coração do corpo repetindo os nomes turvos Como é possível termos esquecido a linguagem? Comparámos os corpos Se os descrevo agora que deixámos de falar esqueço a igualdade e nela cessa a possibilidade de falar É um erro a cidade alguma vez a cantaste? Mas já não é possível a verdade é que definitivamente nela morres Por isso escolherás o teu estilo de novo por palavras errarás Na praia exterminada não pudemos cantar a liberdade sobre o teu corpo correm turvas asas de entre as pedras levantas a cabeça enquanto cais Depois a roupa gera e espalha a escuridão cada corpo isolado se transforma sob as asas que o cobrem Desencontramo-nos a terra recomeça a deter-te preciso de dizer esse teu nome Mas não ouças a minha fala transformada Gastão Cruz poesia 1961-1981 com três desenhos de Manuel Baotista o oiro do dia
sábado, 9 de fevereiro de 2013
Caia a grande neblina
Sob a grande neblina livre e monge mil e quinhentas donzelas protegem o meu pulso mineral e morto. Procuro no meu sangue. Encontro? Encontro, meu amor, encontro? Alto mar as imagens acordam uma surpresa. Braço no braço uma meiguice sagra-me pajem das tuas mãos. Dormem. Deixá-lo! Mas já a minha voz acorda os esponsais. Brilha que brilha medito: melhor se me afigura a noite sem termo. Levanto o teu retrato ao plano dos meus olhos - assim cheguei porque suceda em breve agitado e nervoso o meu corpo e ainda verás nele claro espelho do teu esplendor. Fernando Alves dos Santos in A Única Real Tradição Viva Antologia da Poesia Surrealista Portuguesa de Perfecto E. Cuadrado Assírio & Alvim 1998
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013
Um Amigo
Há uma casa no olhar
de um amigo.
Nela entramos sacudindo a chuva.
Deixamos no cabide o casaco
fumegando ainda dos incêndios do dia.
Nas fontes e nos jardins
das palavras que trazemos
o amigo ergue o cálice
e o verão
das sementes.
Então abre as janelas das mãos para que cantem
a claridade, a água
e as pontes da sua voz
onde dançam os mais árduos esplendores.
Um amigo somos nós, atravessando o olhar
e os véus de linho sobre o rosto da vida
nas tardes de relâmpagos e nos exílios,
onde a ira nómada da cidade arde
como um cego em busca de luz.
Eduardo Bettencourt Pinto
da outra margem
de um amigo.
Nela entramos sacudindo a chuva.
Deixamos no cabide o casaco
fumegando ainda dos incêndios do dia.
Nas fontes e nos jardins
das palavras que trazemos
o amigo ergue o cálice
e o verão
das sementes.
Então abre as janelas das mãos para que cantem
a claridade, a água
e as pontes da sua voz
onde dançam os mais árduos esplendores.
Um amigo somos nós, atravessando o olhar
e os véus de linho sobre o rosto da vida
nas tardes de relâmpagos e nos exílios,
onde a ira nómada da cidade arde
como um cego em busca de luz.
Eduardo Bettencourt Pinto
da outra margem
terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
Caminho sem pés e sem sonhos
Caminho sem pés e sem sonhos só com a respiração e a cadência da muda passagem dos sopros caminho como um remo que se afunda. os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes para que a elevação e a profundidade se conjuguem. avanço sem jugo e ando longe de caminhar sobre as águas do céu. Daniel Faria de Explicação das Árvores e de Outros Animais(1998) |
domingo, 3 de fevereiro de 2013
Caminho
Tenho sonhos cruéis; n'alma doente Sinto um vago receio prematuro. Vou a medo na aresta do futuro, Embebido em saudades do presente... Saudades desta dor que em vão procuro Do peito afugentar bem rudemente, Devendo, ao desmaiar sobre o poente, Cobrir-me o coração dum véu escuro!... Porque a dor, esta falta d'harmonia, Toda a luz desgrenhada que alumia As almas doidamente, o céu d'agora, Sem ela o coração é quase nada: Um sol onde expirasse a madrugada, Porque é só madrugada quando chora. Camilo Pessanha Clepsidra e outros poemas Colecção Poesia Edições Ática 1973
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013
Auto-retrato
Este retrato tem barulho de escada rolante que se cala em movimento o chão dos achados rodeia o mapa de flores pesadas e os degraus germinam nos pés à cata de gente média passageira imóvel dos factos cresce com o excesso latino a morte vitalícia de um céu mecânico a espera é d'aço menino como um século corporal vestido de santos e arcanjos entre os pardais da cama os troféus escondem os donos e pensam grosso à sobremesa sou um homem casado com dois ou três princípios que não têm fim. Boaventura de Sousa Madison e Outros Lugares Edições Afrontamento 1989
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