quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A lição de estética

«Mas que beleza há na poesia?»
Escuta, quando vês um grande amigo
rodeado de mulheres, quando estás
fascinado com a orquestra, e sob o reflector
resplandecem as cores de uma deusa
que desce seminua à plateia,
onde tu estremeces, escondido
em toda aquela multidão!, quando em noite
escura e serena amigos dançam sem mulheres 
numa praça ao som de um
acordeão e tu ficas à parte; pois bem, isso
não é belo para ti? Também é belo
para um velho que se chama
crítico e acha beleza em muitas coisas
e que até se aventurou a descobrir no mundo
e talvez fora do mundo, coisas cada vez
mais belas, mas que diz, com amor: «que belo
é este poema!» E tu,
tu olhas-me sem sequer me dares um beijo?



Sandro Penna
No Brando Rumor da Vida
Assírio & Alvim
2003

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Da margem esquerda da vida

Da margem esquerda da vida
Parte uma ponte que vai
Só até meio, perdida
Num balo vago, que atrai.

É pouco tudo o que eu vejo,
Mas basta, por ser metade,
P'ra que eu me afogue em desejo
Aquém do mar da vontade.

Da outra margem, direita, 
A ponte parte também. 
Quem sabe se alguém ma espreita? 
Não a atravessa ninguém. 



Reinaldo Ferreira
Poemas
Estudo de José Régio
Prefácio de Guilherme de Melo
o chão da palavra/poesia

sábado, 23 de fevereiro de 2013

A recusa das imagens evidentes


I

Rosa que só tens nexo
Fora da tua imagem:
Aqui és só reflexo
Do universo unido
No instante florido
Que ofereces aos que te olham,
Sem te ver, de passagem.


II

Girassol que na retina
Da planície se dissolve.
És a cor mais repentina
Da aragem que te envolve.

Girassol que só te viras
Ao que não te fica perto
E só giras porque giras
Sobre o teu eixo secreto.
.
Girassol que sem volume
Volume que sem contorno
No despegar-se resume
Só a pressa do retorno.


III

É um outono que não é outono.
Tampouco a estação por que se espera
Na dor de nos deixarern ao abandono
As ninfas que são flores na primavera.
.
No entanto nas coisas o segredo
De uma só alma põe a sabedoria
Dando à terra repouso no arvoredo
De que o cedro é a sagrada biografia.


IV

Há noites que são feitas dos rneus braços
E um silêncio comum às violetas.
E há sete luas que são sete traços
De sete noites que nunca forarn feitas.

Há noites que levarnos à cintura
Como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
Duma espada à bainha dum cometa.

Há noites que nos deixam para trás 
Enrolados no nosso desencanto 
E cisnes brancos que só são iguais 
A mais longínqua onda do seu canto. 

Há noites que nos levam para onde 
O fantasma de nos fica mais perto;
E é sempre a nossa voz que nos responde 
E só o nosso nome estava certo. 

Há noites que são lírios e são feras 
E a nossa exactidão de rosa vil
Reconcilia no frio das esferas
Os astros que se olham de perfil.


V 

Há um cipreste que se dissimula 
No dia que nos leva pela mão.
E entre brasas de sol que ardem na rua 
Uma pomba que faz de coração. 
.
Voa: uma linha recta para a lua
Em sonhos que nos levam de balão.
Perversidade de uma paz futura
Onde só chegaremos de caixão?

E nada nos recorda esse futuro 
Escondido atrás das nuvens que trouxeram
Ao nosso rosto os olhos prematuros 
Das órbitas reais que nos esperam. 



Natália Correia
Poesia Completa
Publicações Dom Quixote
1999

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Coração Polar

I

Não sei de que cor são os navios
quando naufragam no meio dos teus braços
sei que há um corpo nunca encontrado algures no mar
e que esse corpo vivo é o teu corpo imaterial
a tua promessa nos mastros de todos os veleiros
a ilha perfumada das tuas pernas
o teu ventre de conchas e corais
a gruta onde me esperas
com teus lábios de espuma e de salsugem
os teus naufrágios
e a grande equação do vento e da viagem
onde o acaso floresce com seus espelhos
seus indícios de rosa e descoberta.
Não sei de que cor é essa linha
onde se cruza a lua e a mastreação
mas sei que em cada rua há uma esquina
uma abertura entre a rotina e a maravilha .
há uma hora de fogo para o azul
a hora em que te encontro e não te encontro
há um ângulo ao contrário
uma geometria mágica onde tudo pode ser possível
há um mar imaginário aberto em cada página
não me venham dizer que nunca mais
as rotas nascem do desejo
e eu quero o cruzeiro do sul das tuas mãos
quero o teu nome escrito nas marés
nesta cidade onde no sítio mais absurdo
num sentido proibido ou num semáforo
todos os poentes me dizem quem tu és.



Manuel Alegre (n. 1936)
in Poemas de Amor
Organização de Inês Pedrosa

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

À minha mãe (reivindicação de uma formosura)

Escuta nas noites como se rasga a seda
e ao chão cai sem ruido a chávena de chá
como uma magia
tu que só palavras doces tens para os mortos
e um ramo de flores levas na mão
para esperar a Morte
que cai do seu corcel, ferida
por um cavaleiro que a agarra com os seus lábios brilhantes
e pelas noites chora pensando que o amavas,
e diz sai ao jardim e contempla como caem as estrelas
e falemos em sussurro para que ninguém nos escute
vem, escuta-me falemos dos nossos objectos
tenho uma rosa tatuada na face e um bastão com
punho em forma de pato
e dizem que chove por nós e que a neve é nossa
e agora que o poema morre
digo-te como uma criança, vem
construí um diadema
(sai ao jardim e verás como a noite nos envolve)



Leopoldo María Panero
Poemas do manicómio de Mondragón
Alma Azul

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Ainda ontem pensava que não era

Ainda ontem pensava que não era
mais do que um fragmento trémulo sem ritmo
na esfera da vida.
Hoje sei que sou eu a esfera,
e a vida inteira em fragmentos rítmicos move-se em mim.





Eles dizem-me no seu despertar:
" Tu e o mundo em que vives não passais de um grão de areia
sobre a margem infinita
de um mar infinito."





E no meu sonho eu respondo-lhes:
"Eu sou o mar infinito,
e todos os mundos não passam de grãos de areia
sobre a minha margem."





Só uma vez fiquei mudo.
Foi quando um homem me perguntou:
"Quem és tu?"
Kahlil Gibran
Areia e Espuma
Coisas de Ler

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Dava a última camisa por um poema

Dava a última camisa por um poema.
Domingo ao fim da tarde só restam cinzas.
Todos. Tudo inteiramente consumido. Tudo,o quê?
Segunda, sobrava alguma palavra intacta na lareira?

Terça
tão comprida como um ano

quarta, outra vez a esperança
Não, sem poema não se pode viver!

Quinta a memória entra em pânico
A pouca claridade que restava anoiteceu

também na sexta as vagonetas com o meu minério
perdem-se no túnel.

Sábado:
trabalho em vão!
Domingo tudo recomeça e voltava a dar
a última camisa por um poema



Jan Kostra
Eslováquia
TRAD.: ERNESTO SAMPAIO 

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

A mágoa é um vício

A mágoa é um vício, a ele volto 
pelas madeiras desta casa, as memórias 
são mais que os sinais pendurados
ao longo das paredes, não descrevo
o que vejo. O que sinto quase 
está no silêncio, deixa de ser tempo
o tempo da noite, nos papéis 
há desenhos que o matam, pontos
ganhos, contas de somar, fáceis
artimanhas evitando as palavras. Nada
difere de como ponho a mão na testa,
de como se afasta o sol para trás
dos castanheiros. Tento dizer
que sou como vós, leves amantes
de suaves lazeres, contradigo, desminto,
nada acontece. Para o dia de hoje
um pequeno esboço de tristeza, derrota
de cumprir, tarefa de vencer, antes
da noite os ombros, as rugas, terão
significado preciso. Só o recomeço
será tempo de sorrisos.

                     (Gestos de miradoiro)



Helder Moura Pereira (1949)
Antologia da Poesia Portuguesa Contemporânea
Um Panorama
Organização de
Alberto da Costa e Silva
Alexei Bueno
Lacerda Editores
1999

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

A roupa envolve-nos

A roupa envolve-nos
a paragem do mar cresce contigo
a língua e o sentido tudo anda
tão ocupado tão cansado e destruído
que a roupa em
torno morre como um foco de ruído

O movimento cerca esta mudez
o mar desidratado é o abismo
onde revives
Viste os vales instáveis do mar
mas para que é perguntar senão que se fez de ti
O fogo sob as vozes que não ouves
A língua vive ainda?

Inscrevo na memória tumefacta
mais uma imagem
Esses corpos nascem
O que posso dizer para cobri-los?
Ouves? Está comigo
a mortalidade da tua vida

Como falar contigo? Mas o som
produzido era tanto
que as cordas se formavam com a sua saída
retomavam a forma destruída
enquanto
tudo o que te dizia dividia
um som tempestuoso

Na ocasião da queda
desses algum
olha as áreas correspondentes no mar
volta transforma-se
é um sinal de
contradição 
e sob a chuva contínua de relâmpagos revive

Porém o som inibe-te prossegues
sem segurança o canto a turva cítara
vence-te não o canto repetido
Essas cordas do peito já distensas

submetem-se ao silêncio poderias
escolhê-las porém sempre repetes
os nomes desses corpos a mudez
intimida-te assim a poesia

nasce com o rumor dos próprios corpos
com o bater dos nomes entre os ombros
tão dóceis mar de músculos

mudos
o coração do corpo
repetindo os nomes turvos

Como é possível termos esquecido a linguagem?
Comparámos os corpos Se os descrevo
agora que deixámos de falar
esqueço a igualdade e nela cessa
a possibilidade de falar

É um erro a cidade alguma vez a
cantaste?
Mas já não é possível a verdade é que
definitivamente nela morres
Por isso escolherás o teu estilo
de novo por palavras errarás

Na praia exterminada não pudemos
cantar a liberdade
sobre o teu corpo correm turvas asas
de entre as pedras
levantas a cabeça enquanto cais

Depois a roupa gera e espalha a escuridão
cada corpo isolado se transforma
sob as asas que
o cobrem

Desencontramo-nos
a terra recomeça a deter-te
preciso de dizer
esse teu nome
Mas não ouças a minha fala transformada



Gastão Cruz
poesia 1961-1981
com três desenhos de Manuel Baotista
o oiro do dia

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Caia a grande neblina

Sob a grande neblina
livre e monge
mil e quinhentas donzelas
protegem o meu pulso mineral e morto.

Procuro no meu sangue. Encontro? Encontro, meu amor, encontro?
Alto mar
as imagens acordam uma surpresa.
Braço no braço uma meiguice sagra-me pajem das tuas mãos.

Dormem. Deixá-lo! Mas já a minha voz acorda os esponsais.

Brilha que brilha medito:
melhor se me afigura a noite sem termo.

Levanto o teu retrato ao plano dos meus olhos
- assim cheguei
porque suceda em breve agitado e nervoso o meu corpo
e ainda verás nele claro espelho do teu esplendor.



Fernando Alves dos Santos
in A Única Real Tradição Viva 
Antologia da Poesia Surrealista Portuguesa
de Perfecto E. Cuadrado
Assírio & Alvim
1998

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Um Amigo

Há uma casa no olhar
de um amigo.
Nela entramos sacudindo a chuva.
Deixamos no cabide o casaco
fumegando ainda dos incêndios do dia.
Nas fontes e nos jardins
das palavras que trazemos
o amigo ergue o cálice
e o verão
das sementes.
Então abre as janelas das mãos para que cantem
a claridade, a água
e as pontes da sua voz
onde dançam os mais árduos esplendores.

Um amigo somos nós, atravessando o olhar
e os véus de linho sobre o rosto da vida
nas tardes de relâmpagos e nos exílios,

onde a ira nómada da cidade arde
como um cego em busca de luz.



Eduardo Bettencourt Pinto
da outra margem

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Caminho sem pés e sem sonhos



Caminho sem pés e sem sonhos
só com a respiração e a cadência
da muda passagem dos sopros
caminho como um remo que se afunda.

os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes
para que a elevação e a profundidade se conjuguem.
avanço sem jugo e ando longe

de caminhar sobre as águas do céu.



Daniel Faria
de Explicação das Árvores e de Outros Animais(1998)
 

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Caminho


Tenho sonhos cruéis; n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...

Porque a dor, esta falta d'harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,

Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.



Camilo Pessanha
Clepsidra 
e outros poemas
Colecção Poesia
Edições Ática
1973

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Auto-retrato

Este retrato tem barulho de escada rolante
que se cala em movimento

o chão dos achados
rodeia o mapa de flores pesadas
e os degraus germinam nos pés
à cata de gente média
passageira imóvel dos factos

cresce com o excesso latino
a morte vitalícia de um céu mecânico

a espera é d'aço menino
como um século corporal
vestido de santos e arcanjos
entre os pardais da cama

os troféus escondem os donos
e pensam grosso à sobremesa

sou um homem casado
com dois ou três princípios
que não têm fim.



Boaventura de Sousa
Madison e Outros Lugares
Edições Afrontamento
1989