sábado, 29 de setembro de 2012

NÃO É O CORAÇÃO



Não é o coração
mas esta carne
em seu rumor.

Não é o coração
mas teu silêncio
de intenso furor.

Não é o coração
mas as mãos
sem corpo, vazias.
Na grave melodia
de um instante
tu e eu
em desequilíbrio
na infame
consistência
de um absoluto
obstáculo.



Ana Marques Gastão
Nocturnos
Canções com palavras
Gótica
2002

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

MÚSICAS



Desculpo-me dos outros com o sono da minha filha.
E deito-me a seu lado, 
a cabeça em partilha de almofada.

Os sons dos outros lá fora em sinfonia
são violinos agudos bem tocados.
Eu é que me desfaço dos sons deles
e me trabalho noutros sons.

Bartók em relação ao resto.

A minha filha adormecida.
Subitamente sonho-a não em desencontro como eu 
das coisas e dos sons, orgulhoso 
e dorido Bartók.

Mas nunca como eles
bem tocada
por violinos certos.



Ana Luísa Amaral
Minha Senhora de Quê

domingo, 23 de setembro de 2012

A MATÉRIA DAS PALAVRAS


Estamos aqui. Interrogamos símbolos persistentes.
É a hora do infinito desacerto-acerto.

O vulto da nossa singularidade viaja por palavras
matéria insensível de um poder esquivo.

Confissões discordantes pavimentam a nossa hesitação.
Há uma embriaguês de luto em nossos actos-chaves.

Aspiramos à alta liberdade
um bem sempre suspenso que nos crucifica.

Cheios de ávidas esperanças sobrevoamos
e depois mergulhamos nessa outra esfera imaginária.

Com arriscada atenção aspiramos à ditosa notícia de uma perfeição
especialista em fracassos.

Estrangeiros sempre
agudamente colhemos os frutos discordantes.



Ana Hatherly
O Pavão Negro
Assírio & Alvim
2003

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

ACONTECEU-ME



Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado
E eu tenho visto olhos !
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz tornava-me quase real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.




Almada Negreiros
Publicado em Almada: O Escritor - O Ilustrador, 1993

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

ESPECTROS QUE VÊM DAS ESTRELAS


Na noite vidro, um brilho de fósforo: azul.
Ouvi dizer que as estrelas são as moradas dos mortos,
irradiam assim alguma possibilidade?..
De qualquer modo saem dos nichos os algozes
que nos torturarão ao longo de uma vida inteira...
«Como te chamas ?», pergunta-se para haver resposta.
Descem com os grandes farricocos de Lua esgazeada,
sem O. V. N. I. de seda que lá nos possam flutuar
e vogam só as capas de morcego sobre os olhos.
Sigo-os eu até às suas pernas clandestinas,
dançam já e cortam-me a cabeça-
para quê voar dêem-me aquele pouco de loucura
de ser mais um zombie por aqui,
pois a minha vida é apenas «for the moment»
e todo o meu destino-1800
é navegar de cartola e bengala na mão de ferro
com castão lunar na gravidade destes sonhos.
Penso, penso em ti, como é o teu nome de cabelos?
Como procuras a tua morada sob as pontes
ou espreitas nas chaminés da grande fábrica
que se ergue no teu castelo de colina?
Mas danças, mas não ris, eu pelo meu lado
já vendi a minha alma a Belzebu,
e as crateras dos teus olhos são tão belas...
muito mais do que um olhar se espelha nelas,
os espectros que assim descem das estrelas
lá os vejo a bailar, a afeição
que um dia a mim também me deu a mão...
 
 
 
Alexandre Vargas
CYBORG
Livros Horizonte
1978

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

115. A meu maior amigo


Quando eu morrer, eu sei, tu escreverás
Triste soneto à morte prematura;
Dirás que a vida cansa em amargura
E, pálido e frio, tu me cantarás.
 
Nas quadras, reflectido se lerá
De como, vã e breve, a vida expira
E como em terra funda, dura e fria,
A vida, má ou boa, acabará.
 
A seguir, nos tercetos, tu dirás
Que a morte é mistério, tudo fugaz,
Verdadeira, talvez, a vida além.
 
Por fim porás a data, assinarás.
E, relido o soneto, ficarás
Contente por tê-lo escrito bem.
 
 
 
Alexander Search
Poesia
edição e tradução
Luísa Freire
Assírio & Alvim
Obras de Fernando Pessoa
1999


terça-feira, 11 de setembro de 2012

Cedo ou tarde



Devias saber
que é sempre tarde
que se nasce, que é
sempre cedo
que se morre. E devias
saber também
que a nenhuma árvore
é lícito escolher
o ramo onde as aves
fazem ninho e as flores
procriam.


Albano Martins
Escrito a vermelho

sábado, 8 de setembro de 2012

A Invisibilidade de Deus




dizem que em sua boca se realiza a flor

outros afirmam:

                      a sua invisibilidade é aparente

mas nunca toquei deus nesta escama de peixe

onde podemos compreender todos os oceanos

nunca tive a visão de sua bondosa mão


o certo

é que por vezes morremos magros até ao osso

sem amparo e sem deus

apenas um rosto muito belo surge etéreo

na vasta insónia que nos isolou do mundo

e sorri

dizendo que nos amou algumas vezes

mas não é o rosto de deus

nem o teu nem aquele outro

que durante anos permaneceu ausente

e o tempo revelou não ser o meu



Al-Berto
O Medo