sábado, 30 de outubro de 2010
A FRESCURA
Ah a frescura na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros,
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que'eu saberia que não vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
E tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora...
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.
Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa
quarta-feira, 27 de outubro de 2010
ESQUEÇO DO QUANTO ME ENSINARAM
Deito-me ao comprido na erva.
E esqueço do quanto me ensinaram.
O que me ensinaram nunca me deu mais calor nem mais frio,
O que me disseram que havia nunca me alterou a forma de uma coisa.
O que me aprenderam a ver nunca tocou nos meus olhos.
O que me apontaram nunca estava ali: estava ali só o que ali estava.
Alberto Caeiro, in "Fragmentos"
Heterónimo de Fernando Pessoa
domingo, 24 de outubro de 2010
Soneto
Passou o Outono já, já torna o frio...
- Outono de seu riso magoado.
Álgido Inverno! Oblíquo o sol, gelado...
- O sol, e as águas límpidas do rio.
Águas claras do rio! Águas do rio,
Fugindo sob o meu olhar cansado,
Para onde me levais meu vão cuidado?
Aonde vais, meu coração vazio?
Ficai, cabelos dela, flutuando,
E, debaixo das águas fugidias,
Os seus olhos abertos e cismando...
Onde ides a correr, melancolias?
- E, refractadas, longamente ondeando,
As suas mãos translúcidas e frias...
Camilo Pessanha _ Nasceu em Lisboa em 1826. Concluiu o curso de Direito na Universidade de Coimbra em 1891. Em 1894 radicou-se em Macau, onde faleceu em 1926. Aí ensinou Filosofia no liceu local. Poeta do mais genuíno simbolismo português, a sua poesia revela um intimismo extremo e uma profunda melancolia. Recorreu ao inebriamento do ópio, refugiando-se na ligação afectiva da sua companheira chinesa. Os seus poemas são de uma grande perfeição formal. Escrevia para si próprio, nunca cuidando de divulgar a obra que foi construindo e que só foi organizada e publicada em 1969 em dois volumes organizados pela escritora Ana de Castro Osório, em dois volumes: "Clepsidra" e "Outros Poemas".
quarta-feira, 20 de outubro de 2010
FIDELIDADE
Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como com a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais do que um momento de estar só consigo?
Diz-me assim devagar coisa menhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.
como com a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais do que um momento de estar só consigo?
Diz-me assim devagar coisa menhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.
Jorge de Sena (1919-1978)- Nasceu na cidade de Lisboa, licenciou-se em engenharia na cidade do Porto. Exilou-se no Brasil, onde leccionou literatura e adquiriu a nacionalidade brasileira. Depois mudou para os Estados Unidos, onde leccionou Literatura Portuguesa e Brasileira em universidades do Wisconsin e da Califórnia, onde faleceu. Deixou vasta obra como ensaísta, dramaturgo e historiador da cultura. Mas foi principalmente como poeta, de vasta obra publicada, que se arvorou à condição de um dos maiores poetas em língua portuguesa.
sábado, 16 de outubro de 2010
AS PALAVRAS
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos e beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Eugénio de Andrade, pseudónimo escolhido pelo poeta que, nasceu em Póvoa da Atalaia, concelho de Fundão, em 19 de Janeiro de 1923. Viveu na cidade do Porto a maior parte da sua vida, desempenhado as funções de funcionário dos Serviços Médico-Sociais. A cidade concedeu-lhe o título de cidadão honorário e nela foi criada uma Fundação com o seu nome. Aí morreu em 13 de Junho de 2005. É, sem sombra de dúvida, um dos maiores poetas contemporâneos da língua portuguesa.
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos e beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Eugénio de Andrade, pseudónimo escolhido pelo poeta que, nasceu em Póvoa da Atalaia, concelho de Fundão, em 19 de Janeiro de 1923. Viveu na cidade do Porto a maior parte da sua vida, desempenhado as funções de funcionário dos Serviços Médico-Sociais. A cidade concedeu-lhe o título de cidadão honorário e nela foi criada uma Fundação com o seu nome. Aí morreu em 13 de Junho de 2005. É, sem sombra de dúvida, um dos maiores poetas contemporâneos da língua portuguesa.
quarta-feira, 13 de outubro de 2010
Poema das coisas belas
António Gedeão é o pseudónimo de Rómulo de Carvalho, que exerceu a actividade de docente de Físico-Químicas no ensino liceal .
Revelou-se como poeta apenas em 1956, com "Movimento Perpétuo", a que se seguiram outras obras como "Teatro do Mundo" (1958), "Máquina de Fogo" (1961), "Poema para Galileu" (1964), "Linhas de Força" (1967), "Poemas Póstumos" (1983), "Novos Poemas Póstumos" (1990). A sua poesia que foi reunida em "Poesias Completas" (1964), teve fontes de inspiração heterogéneas mas articuladas de modo original. Nelas conseguiu comunicar o sofrimento e a solidão humana, muitas vezes com recorrendo a um registo algo irónico. Alguns dos seus textos poéticos foram amplamente divulgados através de músicas de intervenção, como no caso, muito conhecido, do poema "Pedra Filosofal".
Na data em que celebrou o seu nonagésimo aniversário, António Gedeão foi alvo de uma homenagem nacional, tendo sido condecorado com a Grã-Cruz da Ordem de Sant'iago de Espada.
As coisas belas,
as coisas que deixam cicatrizes na memória dos homens,
porque motivo serão belas?
E belas, para quê?
As coisas belas,
as que deixam cicatrizes na memória dos homens,
por que motivo são belas?
E belas, para quê?
Põe-se o Sol porque o seu movimento é relativo.
Derrama as cores porque os meus olhos vêem.
Mas por que será belo o pôr do Sol?
E belo, para quê?
Se acaso as coisas não são belas em si mesmas,
mas só são coisas quando coisas percebidas,
porque direi das coisas que são belas?
E belas, para quê?
ANTÓNIO GEDEÃO
Revelou-se como poeta apenas em 1956, com "Movimento Perpétuo", a que se seguiram outras obras como "Teatro do Mundo" (1958), "Máquina de Fogo" (1961), "Poema para Galileu" (1964), "Linhas de Força" (1967), "Poemas Póstumos" (1983), "Novos Poemas Póstumos" (1990). A sua poesia que foi reunida em "Poesias Completas" (1964), teve fontes de inspiração heterogéneas mas articuladas de modo original. Nelas conseguiu comunicar o sofrimento e a solidão humana, muitas vezes com recorrendo a um registo algo irónico. Alguns dos seus textos poéticos foram amplamente divulgados através de músicas de intervenção, como no caso, muito conhecido, do poema "Pedra Filosofal".
Na data em que celebrou o seu nonagésimo aniversário, António Gedeão foi alvo de uma homenagem nacional, tendo sido condecorado com a Grã-Cruz da Ordem de Sant'iago de Espada.
As coisas belas,
as coisas que deixam cicatrizes na memória dos homens,
porque motivo serão belas?
E belas, para quê?
As coisas belas,
as que deixam cicatrizes na memória dos homens,
por que motivo são belas?
E belas, para quê?
Põe-se o Sol porque o seu movimento é relativo.
Derrama as cores porque os meus olhos vêem.
Mas por que será belo o pôr do Sol?
E belo, para quê?
Se acaso as coisas não são belas em si mesmas,
mas só são coisas quando coisas percebidas,
porque direi das coisas que são belas?
E belas, para quê?
ANTÓNIO GEDEÃO
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