sábado, 26 de abril de 2008

POEMA

Ai, há quanto tempo eu parti chorando
Deste meu saudoso, carinhoso lar! ...
Foi há vinte? ... Há trinta? Nem eu sei já quando! ...
Minha velha ama, que me estás fitando,
Canta-me cantigas para me eu lembrar!
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Canta-me cantigas, manso, muito manso ...
Tristes, muito tristes, como à noite o mar ...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
Que a minha alma durma, tenha paz, descanso,
Quando a Morte, em breve, m'a vier buscar! ...

Guerra Junqueiro, do livro Os Simples, de 1892

quarta-feira, 23 de abril de 2008

DECLARAÇÃO

Teorias são brinquedos
Que, por mim, não tomo a sério.
Tomo a sério os meus enredos.
Crer ...só sei crer no Mistério.
De doutrinas não me importo!
Sinto-me bem no mar alto.
Só me recolho ao meu porto.
Convidam-me e sempre eu falto.
De escolas, não sou aluno.
Se comunico é em verso.
Sou muito diverso,
E uno.

José Régio

quarta-feira, 16 de abril de 2008

FIM

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andalusa ...
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro!


Mário de Sá-Carneiro

FIM

Mário de Sá-Carneiro

domingo, 13 de abril de 2008

OS ARES

Os ares
como são furtivos

Como os diria
calmos
quando não faltam
na respiração

Quando são
vento melhor
que o pulmão
que o calor

Respiram consigo
os ares claros
movem a vida
raros

Ares densos não são esses
para quem sente denso
o coração

Chamai-lhes vento
e claramente os ares
são roucos
se então
eles trespassam
a pele da boca

Fiama Hasse Pais Brandão

terça-feira, 8 de abril de 2008

AS PALAVRAS

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são de noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?


Eugénio de Andrade

segunda-feira, 7 de abril de 2008

SONETO DO REGRESSO

Volto contigo à terra da ilusão,
mas o lar de meus pais levo-o o vento
e se levou a pedra dos umbrais
o resto é esquecimento:
procurar o amor neste deserto
onde tudo me ensina a viver só
e a água do teu nome se desfaz
em sílabas de pó
é procurar a morte apenas,
o perfume daquelas
longíquas açucenas
abertas sobre o mundo como estrelas:
despenhar no meu sono de criança
inutilmente a chuva da lembrança.

Carlos de Oliveira

quinta-feira, 3 de abril de 2008

MAR SONORO

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailado do meu sonho,
Que momentos há em que suponho
Seres um milagre criado só para mim.

Sophia de Mello Breyner Andresen